"Vale tudo para chegar à paz, menos matar"


Entrevista com o cineasta israelense Samuel Maoz
30.04.2010

por Vasco Câmara com Margarida Santos Lopes

É um espantoso exercício de cinema e um gesto de catarse - ou seja, equilibra-se entre uma necessária distância e a dolorosa proximidade.

É um grande filme de guerra. E é o mea-culpa do israelita Samuel Maoz, que tinha 20 anos quando foi fazer a Guerra do Líbano. Hoje tem 48, só agora deixou de sentir o cheiro a carne queimada. O espectador de "Líbano" não se livrará disso.

Só 20 anos depois é que o israelita Samuel Maoz deixou de sentir o cheiro a carne queimada. E só então conseguiu contar a história de Schmulik (diminutivo de Samuel, ele próprio), e de Herzl, de Yigal e de Assi, quando tinham 20 anos e estiveram, os quatro, dentro de um tanque na Guerra do Líbano. 6 de Junho de 1982. Imobilizados, perdidos, numa aldeia libanesa.

Entre a experiência de catarse e o exercício de "género" - ou seja, entre a proximidade dolorosa e a capacidade de manter a distância que lhe permita ser "filme de guerra" -, "Líbano" mete o espectador num tanque durante hora e meia.

Entrevista (por telefone) com um homem de 48 anos fragilizado por uma gripe e fortalecido pelo cinema (mas que não esquece: a guerra é o primeiro pensamento do dia e o último da noite). Conversa sobre a sociedade israelita, sobre o exército mais poderoso do Médio Oriente, sobre a culpa depois do gatilho...

"Claro que fazer o filme foi a forma - não sei se é a expressão correcta - de me perdoar. Claro que tenho responsabilidades. Vê-se nas primeiras sequências de 'Líbano', na plantação de bananas, que quando se pressiona um gatilho é-se sempre aquele que executa..."

Dificilmente não se sentirá o cheiro a carne queimada na sala de cinema, onde se projeta "Líbano".
Depois de se ver "Líbano", percebe-se uma deslocação no título: tem menos a ver com uma recriação de um acontecimento, uma guerra, do que com uma abstracção, a guerra.

E como o "Apocalypse Now" do filme de Francis Coppola, há uma certa ressonância mítica em "Líbano"...

Os títulos colocam os filmes num determinado sítio. E, sim, este título refere-se a algo de muito mais global. "Líbano" não se refere a uma guerra ou a um país. Refere-se à "geração Líbano", a nós, soldados israelitas, que estivemos na guerra do Líbano. Talvez porque, sei lá, estamos todos um bocado fodidos da cabeça. É uma expressão que se ouve em Israel, "a geração Líbano", é algo de muito local.

Porquê tanto tempo para chegar a este filme? O que é que foi mais determinante: questões de produção ou o "timing" da sua catarse?

A primeira vez que tentei fazer este filme foi em 1988, quando acabei o curso de cinema na universidade. Mas ao fim de uma ou duas páginas de escrita do argumento, não parava de sentir o cheiro, o cheiro a carne queimada.

Lembro-me que era tão forte que recuei. Não só porque tivesse medo - claro que, de certa forma, tinha medo -mas sobretudo porque percebi que não podia fazer um filme só porque tinha estado lá. Tinha que ser um realizador, alguém que aproveitasse as suas memórias, a sua dor, as processasse, mesmo que de forma fria, em direcção a um filme que caminhasse por si próprio.

No estado em que me encontrava, o filme ia ser uma confusão total. O cheiro era uma espécie de sinal: enquanto sentisse o cheio a carne queimada não estava preparado para fazer esse filme.

O outro aspecto tem a ver com a minha geração, a tal "geração Líbano", que é uma geração do meio. Os nossos pais, os nossos professores, eles vieram da Europa, dos campos [de concentração] alemães.

Lembro-me da minha professora com o número [de prisioneira do campo] tatuado no braço a gritar, na aula, que tínhamos de lutar, e morrer se fosse necessário, pelo nosso país porque toda a gente nos queria exterminar. Mas nós éramos rapazes normais, nascidos em Israel, que aos 18 anos só pensavam em raparigas e nas praias de Telavive.

Estávamos a ser submetidos, de certa maneira, a uma lavagem ao cérebro. Voltar da guerra com duas mãos e dez dedos, sem marcas de queimadura na pele, e começarmos a queixar-nos de problemas dentro da cabeça, isso era imperdoável.

Diziam-nos: "Têm mas é de agradecer o facto de estarem vivos; nós estivemos nos campos [de concentração]." Lembro-me de odiar os campos deles, eles estavam sempre a usá-los... Não sentíamos que tínhamos legitimidade para nos queixar.

O ponto de viragem foi 2006, durante a segunda Guerra do Líbano [iniciada a 12 de Julho, quando guerrilheiros do Hezbollah raptaram dois soldados israelitas e mataram sete, numa incursão fronteiriça, o que levou Israel a bombardear o "País do Cedro" durante 34 dias].

Sentava-me em frente da televisão, a ver os "reality-shows". Sem falar. Mas comecei a ver os nossos filhos a lidarem outra vez com o mesmo "Líbano". Felizmente que tenho filhas, mas os filhos dos meus amigos iam para a guerra morrer.

Foi um sinal para mim: senti que não se tratava tanto dos meus problemas, das minhas necessidades, da minha dor; percebi que ia conseguir encontrar uma forma de fazer algo para, sem a ambição ingénua de acabar com a guerra, dar um passo. Talvez conseguisse salvar vidas.

Aprendi uma coisa: quando as coisas nos dizem respeito, podemos sofrer em silêncio. Mas quando implicam os nossos filhos, é totalmente diferente.

Ou seja: sendo um filme pessoal, no sentido de que nasceu de uma catarse, é um filme, e um filme de género, o "filme de guerra", que tem os seus códigos; o que implicou distância, dirigir actores, técnicos...

Exactamente. Por isso, quando sentia o cheiro a carne queimada achava que estava demasiado envolvido, não estava pronto a processar as minhas emoções.
É claro que o processo para aqui chegar foi terapêutico. Se calhar foi o melhor tratamento que consegui. Sem planear isso.

E nesse processo viu filmes de guerra, como um escudo, para encontrar a distância do cinema?

Claro. Embora estes 25 anos tenham sido escudo suficiente [risos]. Quando me impus a mim próprio que tinha de fazer este filme, que talvez assim conseguisse mudar a opinião de alguém, de um pai ou uma mãe, senti também que era uma hipótese de emendar os meus erros.

Espero que isto não seja patético: tive a oportunidade de fazer o oposto daquilo que tinha feito [na guerra].
Durante a rodagem de alguns dos planos, falava com os actores, gritava com eles, puxava por eles até ao limite quando achava que a cena se estava a perder... mas depois do "corta" conseguia controlar-me, a coisa acabava. Aprendi a fazer isso.

Que filmes viu?

Não vi "Apocalypse Now" antes de fazer o filme porque o fui vendo de dois em dois anos. É uma grande influência, mas é claro que dizer isso não é original. A primeira vez que vi o filme era ainda aluno da escola de cinema, e lembro-me que imediatamente começámos a falar sobre ele.

Um colega meu disse que o que tinha sido marcante era o facto de pensar que ia ver um filme de guerra, mas que a guerra se revelava uma coisa totalmente diferente. Isso foi exactamente a guerra que experimentei, a loucura, o caos...
Houve outros filmes que vi, sem influência directa: "O Caçador" [Michael Cimino], "A Barreira Invisível" [Terence Mallick], "Vai e Vê" [Elem Klimov].

Qual a reacção em Israel a "Líbano", que filma do lado da vulnerabilidade daquele que é tido como o mais poderoso exército do Médio Oriente?

Depois da guerra de 2006 [que causou mais de mil mortos, a maioria libaneses, e quase um milhão de deslocados - entre os quais 300 mil a 500 mil israelitas - sem que Israel conseguisse forçar a rendição do Hezbollah] toda a gente ficou a perceber que o Exército israelita não é aquilo que se pensa que é.

As reacções foram mais positivas do que negativas. Se tentar analisar isso, direi que quanto mais nova é a audiência mais positiva é a reacção; quanto mais velha, mais negativa.

Há aqui três gerações. Não posso julgar as pessoas que vieram para Israel da Europa, terão legitimidade para sentir que toda a gente nos quer exterminar. Depois há a minha, a do meio. E a geração mais nova, que é a geração global, do Google, do iPhone.

E é assim que se faz o discurso sobre História: quando a geração dos meus pais lutava, só atingia glória e vitórias; a minha já foi assim-assim; e quando a geração mais nova foi para a guerra, em 2006, a motivação era baixa. E foi o que se viu.

O soldado israelita pode questionar as razões pelas quais vai para a guerra?

Há uma diferença enorme entre o meu tempo, anos 70, e agora. Ir para o Exército é uma obrigação legal... Mas uma coisa é não querer fazer a guerra, outra não querer ir para o Exército. Pode-se ir para o Exército e não ir para a guerra: se se alega razões médicas, por exemplo, fica-se a assinar papéis.

Mas no meu tempo isso nem era uma opção. Era o mesmo que dizer que não se queria ir para a escola. Tornávamo-nos párias. E seria como andar com essa marca escancarada na testa.

A personagem do falangista no filme é o repositório do Mal - até a escolha do actor acentua isso. Os soldados israelitas são figuras de uma certa inocência. São manipulados. Isso é a sua visão do envolvimento de Israel nessa guerra? Isso não é retirar a responsabilidade do seu país?

Isto é apenas um sentimento pessoal a partir de um ponto de vista pessoal. É o que um ponto de vista pessoal pode dizer sobre uma verdade histórica. Para mim, os falangistas eram o diabo encarnado. Houve coisas que vi, que eles fizeram, das quais ainda me é difícil falar. Nem se imagina.

Por exemplo, quando estava em Beirute, no aeroporto, amarravam os prisioneiros entre dois carros e matavam-nos assim [no filme é assim que um falangista ameaça um prisioneiro sírio].

Quanto à responsabilidade individual, à minha, claro que fazer o filme foi a forma - não sei se é a expressão correcta - de me perdoar. Claro que tenho responsabilidades. Vê-se nas primeiras sequências de "Líbano", na plantação de bananas, que quando se pressiona um gatilho é-se sempre aquele que executa... Mas fui o último nessa cadeia de morte.

E há uma grande diferença entre sentir que não tivemos escolha e sentir que somos culpados, responsáveis. Isso é algo que não me abandonará. É sempre o primeiro pensamento da manhã e o último da noite.

Falou do cheiro a carne queimada... no ano passado, espectadores do Festival de Veneza, onde o filme se estreou, disseram ter sentido cheiro, cheiro a queimado, enquanto viam o filme. Como trabalhou o "huis clos" de "Líbano"? Como é que mergulhou os actores nisso?
Tem-se a sensação de que se está dentro de um tanque... mas se se vir bem, plano a plano, temos "close-ups" dos actores, nem sequer há um plano em que se vê um tanque.

Comecei a trabalhar com os actores dois meses antes da rodagem. Vou dar um exemplo: a primeira coisa foi explicar-lhes como era estar dentro de um tanque, mas em vez de lhes falar, e eles certamente iriam compreender, fechei toda a gente num contentor durante três horas.

Deixei que eles experimentassem. E ao fim de três horas, a nossa energia está de tal forma em baixo... sempre à espera que alguém abra a porta. Eles não foram capazes sequer de falar quando saíram. Criei para eles experiências... Não é algo sobre o qual se possa falar.

É preciso levar os actores a um ponto em que eles... sintam. É preciso mais do que palavras. A rodagem foi tecnicamente difícil, mas os actores estavam prontos. Estávamos todos.

Israel acaba de completar o seu 62.º aniversário. No diário hebraico "Ha'aretz", o colunista Bradley Burston escreveu que a ocupação "é o pior inimigo de Israel". O Irão, o Hamas o Hezbollah "querem que Israel deixe de existir, mas o governo tem instrumentos para os combater". Contra a ocupação, porém, o governo de Benjamin Netanyahu, determinado em manter os colonatos judaicos nos territórios palestinianos, "é impotente". Concorda?

Não li esse artigo, mas daquilo que me diz não posso concordar totalmente, por causa do Irão. Esse é o inimigo mais perigoso. E não perecebo porque é que o Ocidente ainda não percebeu isso.
A ocupação, claro, é um inimigo de Israel. Devemos deixar a coisa... Para firmarmos acordos de paz não precisamos de nos tornar amigos. Se esperarmos para sermos amigos, isso vai demorar uns 100 anos, são precisas gerações.

Mais de metade da população de Israel quer acabar com este problema e ter uma vida normal. Mas, no fundo, a paz acabará por acontecer menos por razões humanitárias do que por razões capitalistas. Há dias, um jornal israelita publicou um artigo em que dizia que cada cidadão israelita paga uma percentagem da electricidade da Faixa de Gaza. Isso causou um burburinho por aqui. Mas vale tudo para chegar à paz. Menos matar.

O que vai acontecer a seguir ao realizador Samuel Maoz?

É o que tenho pensado nos últimos sete meses. Não há dúvidas de que estou cheio de paixão e esfomeado [para filmar]. E as oportunidades agora serão grandes. Mas continuarei os meus projectos e à minha maneira. Porque, é claro, neste último ano Hollywood tentou aliciar-me.

É uma tentação, mas continuarei os meus projectos. Tenho a sorte de neste momento conseguir facilmente arranjar dinheiro.
Tenho dois projectos: um tem ainda a ver com a guerra, mas com os efeitos secundários da guerra. O outro é uma comédia negra.