José Saramago Imortal



Saramago em 4 tempos

Tempo Primeiro
"Era um comunista agnóstico.
Era o seu próprio partido"

por Baptista-Bastos
19.o6. 2010

[Baptista-Bastos acompanhou-o nos desacordos com o PCP, na atenção minuciosa às coisas da vida, nas conversas sobre o marxismo e o partido. De Saramago ficou a memória de um "desobediente" que nunca foi "dissidente". ]

Havia, nele, uma atenção minuciosa às coisas da vida, fossem elas de natureza material ou transcendental. E sabia mais, muito mais de religião e de textos sagrados do que muitos dos que o criticavam. José Saramago aprendera, muito cedo, que uma ideia apela sempre para outra ideia, e que as sínteses parciais produzem o imobilismo.

Conversamos, muitas vezes, sobre a natureza do marxismo, a noção de partido, os ritos da obediência, os imperativos da consciência e os paradoxos da História que, como se sabe, é uma deusa cega.

O Saramago era um desobediente; não um «dissidente»: um desobediente porque refratário ao dogma de que «o partido tem sempre razão», mesmo quando a não tinha.

O fulgor da contradição era o ânimo do seu espírito. Não estava, permanentemente, a favor do contra; mas estar no contra, ser do contra fazia parte dessa dialética da totalidade que, afinal, é a substância que produz os homens livres.

Esteve, inúmeras vezes, em total e absoluto desacordo com a direção do PCP, e disse-o, alto e bom som, quando muitos outros utilizavam a surdina. Esteve para sair; não saiu. Sei do que falo porque encontrei-me envolvido no assunto. E não saiu porque não admitiu que as circunstâncias do acaso se transformassem numa espécie de ordem mecânica.

O PCP ignorara-o, na fundação de «o diário», ele estava desempregado e marcado pelos acontecimentos do 25 de Novembro, conducentes à substituição da direção do «Diário de Notícias», de que fazia parte. Deveremos entender como má-fé este episódio pouco claro?

Nem mesmo aí José Saramago se queixou, protestou ou saiu. Não deixou, porém de tomar posição, anos depois, quando um grupo de militantes condenou as indecisões dos dirigentes do PCP, acerca do «golpe» de Moscou. Nada impedia este homem de expor a força das suas causas e o poder das suas convicções. Porque de convicções se tratava e sempre se tratou.

Um comunista agnóstico, que acreditava na dialética como ciência e na sua incompatibilidade ocasional com as estratégias partidárias. Sopesadas bem as palavras, penso que Saramago era o seu próprio partido, e que o PCP a sua solidariedade institucional.

A tristeza essencial que deixava transparecer acentuou-se na proporção em que o mundo regredia nas opções sociais, e que Portugal acelerava uma decadência degenerescente, refletida em todos os setores da sociedade. Não parava, porém; mesmo quando a doença o atingiu rudemente. E não parava porque continuava a acreditar no poder da palavra, no império das ideias e na grandeza da dignidade humana.

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Tempo Segundo
"O que passa à eternidade é o talento, o trabalho e dedicação"
por Francisco José Viegas
19.06.2010

[Em 91, Saramago mostrou a Francisco José Viegas as 444 páginas da primeira impressão de "O Evangelho Segundo Jesus Cristo". O escritor e jornalista tornar-se-ia um dos maiores especialistas na obra do Nobel]


Lembro o cenário: uma casa tranquila onde os objetos essenciais eram a mesa de trabalho, um sofá, uma fotografia - e uma janela voltada para o mar.

Estávamos na Ericeira e eu tinha combinado entrevistá-lo antes da edição de "O Evangelho Segundo Jesus Cristo", em 91. José Saramago escrevera e reescrevera o livro num 'videowriter', moderno na época; nessa tarde fez a primeira impressão do texto em papel.

Tinha exatamente 444 páginas. Saramago era cuidadoso com os seus livros - entregava os originais quase irrepreensíveis, sem rasuras. E falava sobre eles com uma notável clareza, muito rara. Recordo por isso quando me convidou para fazer a apresentação de "Ensaio sobre a Cegueira", de 95 - e como falava sobre o livro como se o tivesse escrito há muito tempo.

Esta aparente "facilidade" contrastava, no entanto, com a forma disciplinada - e até austera - que rodeava o seu processo de escrita.

Foi já depois da atribuição do Nobel, em Lanzarote (repetia-se o mesmo cenário: mesa de trabalho, um sofá, uma fotografia - e uma janela voltada para o mar) que pude perceber o trabalho que acompanhou a escrita de "O Ano da Morte de Ricardo Reis" (que, juntamente com "Memorial do Convento" e "Ensaio sobre a Cegueira" constitui uma espécie de "trilogia do cânone"): uma agenda, dessas, antigas, domésticas, que Saramago tinha transformado num diário de Ricardo Reis escrito em Lisboa depois de regressar do Brasil, e que funcionaria como uma espécie de "segundo livro" que reuniria a parte estritamente documental do romance. Tudo tinha sido ali anotado, desde o preço do tabaco no Alentejo naquele ano, até à menção das crises diplomáticas que varriam a Europa e anunciavam o fascismo.

Esse trabalho oficinal sempre me apaixonou em José Saramago - e era justamente esse trabalho disciplinado que tornou possível uma obra monumental, escrita do ponto de vista da eternidade. Só um monumento pode fazê-lo.

A consagração de Saramago deve-se à literatura e à sua "intervenção cívica" mas só a literatura, que está ligada à eternidade, o irá transcrever mais tarde nas palavras da terra, no gigantesco poema do mundo, onde entrará "Manual de Pintura e Caligrafia", por exemplo, um livro injustamente esquecido, e essa "trilogia do cânone" onde estão inscritas as linhas de quase toda a sua obra: a atenção aos pequenos personagens (quase anónimos, quase insignificantes), o absurdo da História, a ideia de epopeia, a fragilidade do humano e do humanismo.

Tanto em "Levantado do Chão" como em "Memorial do Convento" ou em "Todos os Nomes", os seus grandes personagens são essencialmente humildes, anônimos e colhidos (e escondidos) da massa da multidão. Baltazar e Blimunda em vez do rei que manda construir o convento de Mafra; os camponeses e o cão atravessando os campos do Alentejo e ressuscitando no final, em vez dos "exemplos de classe"; uma mulher anónima e discreta que enfrenta a cegueira do mundo e interpreta as suas metáforas.

Mesmo o amor, mesmo o amor: é uma das suas mais belas histórias de amor, a de "História do Cerco de Lisboa", a que é vivida pela editora e pelo revisor - ele, mais uma vez, o homem anônimo, humilde, modesto, que representa toda a modéstia e toda a humildade dos homens e mulheres sem história (à maneira de Gogol; ou encarando o absurdo, como Kafka).

Creio, acreditei sempre - e escrevi-o - que Saramago era um homem extremamente religioso. Só um homem religioso pode rondar a blasfêmia e interrogar diretamente a figura de um Deus "humanamente injusto". O resto é polêmica, passagem, indignações. O que passará à eternidade é isso: talento, trabalho, dedicação.

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Tempo Terceiro
"Ele construiu um mundo que no futuro vai extender o seu eco"
por José Luís Peixoto

19.06. 2010

Em 2001 o escritor José Luís Peixoto recebeu o Prêmio Literário José Saramago pelo livro "Nenhum Olhar". Ganhou também um amigo que acompanhou até ao fim da vida

Neste momento, tenho ainda dificuldade de perceber o significado do desaparecimento de José Saramago. Creio que também Portugal não é ainda capaz de perceber o significado completo dessa perda. Esse entendimento chegará no momento em que eu e Portugal formos capazes de compreender completamente o que significou termos uma figura desta dimensão nas nossas vidas, misturada com as nossas histórias.

Recebi essa notícia em Londres. A chegar de um encontro literário e em direção a outro encontro literário. O segundo não chegou a acontecer. A notícia chegou-me de Portugal, em mensagem seca de telemóvel. Minutos depois, também por telemóvel, um amigo inglês contou-me que o Festival Literário de Edimburgo iria ser encerrado este ano por uma comunicação de José Saramago. Também esse momento não acontecerá. A morte deixa silêncio.

Se é preciso encontrar palavras, recordo o momento em que o conheci. Em 2001, quando recebi o prémio que leva o seu nome, esperava um homem sisudo, sério, a falar de assuntos sérios. Realmente, aquilo que José Saramago tinha para dizer era sério, mas a forma é muito importante e o homem que recordo sorria, gracejava.

Enquanto viver, não poderei esquecer a atenção que prestava às palavras de um rapaz que ainda não tinha chegado aos trinta anos. Hoje, acredito que esse carinho estava ligado à atenção que guardava para com a literatura, esta arte que lhe pertencia e para com esse país, feito de tantas matérias concretas e abstratas, esse país simples e contraditório, que nunca deixou de ser seu, que levou sempre consigo nas palavras, nas obras e no pensamento.

Agora, ficamos com Baltazar Sete-Sóis, Blimunda e toda uma galeria de personagens imortais, de momentos imortais, que permanecem naquilo que escreveu e naquilo que formos capazes de ler. Se não cedermos ao medo, ficamos também com o exemplo de um espírito crítico, atento à sociedade, voz daqueles a quem é negada voz ou cujo sentido é ocluso por vozes mais ruidosas, com megafones mais potentes.

Esse homem de óculos e de rosto sério construiu um mundo que, no futuro que hoje começa, continuará a estender o seu eco. José Saramago ousou enredar-se nos problemas do seu tempo, foi completamente contemporâneo de todos nós, mas criou uma obra que toca as questões essenciais da natureza humana e essas continuarão com a mesma atualidade de hoje: a cegueira e a lucidez, a morte e tudo o resto, a vida incandescente a cada página.
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Tempo Quarto
Para se amar a escrita de Saramago não é preciso concordar com Saramago.
por Manuel Queiroz
19.06. 2010
O título, diga-se já, é tirado de uma afirmação do Padre Tolentino da Nóbrega, dita num encontro com José Saramago que o "Expresso" publicou. Há quem goste muito, há quem goste pouco e mesmo quem não goste nada da obra do escritor ribatejano. Eu gostei dos livros que li, sobretudo da fineza da ideia e da sua tradução em palavra. Bastante menos me identifiquei com as suas leituras políticas e religiosas.

O José Saramago escritor apareceu tarde e o seu tempo de braço armado do Partido Comunista - nomeadamente como director-adjunto do "Diário de Notícias" nos tempos do PREC - é daquelas coisas que todos preferíamos esquecer, mas não é pela morte que se faz um santo, nem ele o queria ser.

E para se amar a escrita de Saramago não é preciso concordar com Saramago, para pegar numa frase do cardeal patriarca a propósito do mundo e dita há bem poucos dias.
Essa zona de sombra da sua vida é aqui chamada para ilustrar o fato de que não é só de coerência que se faz a vida, a popularidade e o sentido da vida dos homens.

"A representação mais precisa da alma humana é um labirinto", escreve ele num dos seus livros, quiçá falando dele próprio.

Saramago é um homem "empapado" em cristianismo e muitos títulos dos seus livros nos remetem para isso. Mas reconta-nos uma Bíblia de violência e de sexo, de excessos maldosos e literais, de "disparates", como diz em "Caim". Pede contas a Deus e aos seus profetas de forma muito dura, coisa que não faz com os seus profetas ateus e políticos.

Mas o que o torna polêmico não é isso, é antes o talento com que o fez. Um talento que até se poderia definir como divino, para entrar nas provocações que usou em tantos dos seus textos e em tantas das suas declarações políticas, que, para muitos de nós, aliás, não tinham sentido nenhum. E renegavam até algumas das suas teorias e das ideias fundadoras da ideologia que professou até ao último dia da sua vida.

Pegar no "Memorial do Convento" é ficar contagiado por uma escrita despojada e certa, um trabalho artesanal e de filigrana, pelo desenvolvimento de uma ideia simples tratada com elegância, gosto e finura.

Como pegar em "As Pequenas Memórias" é voltar a um mundo em que percebemos que ele pode ter vivido e que nos conta com a alma de uma criança. Era um profissionalíssimo escritor, criativo, sempre a buscar novas fórmulas e novos caminhos, e um escritor de Português, coisa que nem todos são.

Ainda assim, o único Prêmio Nobel da literatura lusófona chegou a ver o "Evangelho" ser cortado por um infeliz secretário de Estado da Cultura do governo de Cavaco Silva, Sousa Lara, porque atacava "o património religioso dos portugueses". A vida de José Saramago não foi linear, não foi um caminho marcado para a glória. Foi desbravada a picareta e enxada com muito trabalho de cinzel. Também nisso muito português, aliás.

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