Lembranças da infância na Sibéria


Livro


Nicolai Lilin. Um cartão de memória cheio de crimes


por Nuno Castro
19.06. 2010


"Educação Siberiana" expõe um submundo criminoso e atrocidades cometidas na União Soviética. O autor avisa: "Se me querem matar, venham"

Esta história podia ser de um homem que teve o azar de crescer numa comunidade onde matar era uma lição que se aprendia cedo: aos seis ou sete anos, a criança tinha a honra de tirar a vida a um animal, numa espécie de cerimónia de iniciação ao crime.

Os outros azares sucediam-se em cadeia: aos dez anos os miúdos entravam para o clã dos menores, estatuto que lhes permitia começar a ter um papel ativo nos crimes; aos 13 anos já tinham homicídios e prisões no currículo, já tinham sido presos, assistido a violações, torturas e assassinatos de familiares.

Tudo isto, recorda Nicolai Lilin no livro "Educação Siberiana", se passou em terra-de-ninguém: a Transnístria, um país do Leste Europeu que nem aparece nas enciclopédias e vive numa encruzilhada legal - já foi da União Soviética, declarou independência em 90, voltou a ser ocupado e depois a Moldávia reclamou o território, enquanto outros declararam a sua autonomia com o apoio da Rússia.

Mas não foi uma história de azar que Nicolai Lilin, 30 anos, quis contar:

"Não sou nenhuma vítima, não choro, não me arrependo. Às vezes até recordo esses tempos com nostalgia. É como recordar uma queda de bicicleta em que partimos o braço... Era uma situação normal para nós. E transmitiram-me bons valores. Nunca me droguei, nunca recorri a violência extrema, apenas seguia as regras da comunidade. Tive amigos que morreram de overdose, outros meteram-se no tráfico de armas... nunca cometi esses erros. Acho que tive sorte."

Talvez tenha razão, tendo em conta que é esse passado violento que lhe sustenta o presente.

"Educação Siberiana", um romance baseado nas suas experiências em Transnístria, já vendeu mais de 100 mil exemplares na Itália (onde Nicolai vive), valeu-lhe elogios rasgados de Roberto Saviano (autor do polémico "Gomorra"), foi publicado em 20 países e vai ser adaptado ao cinema por Gabriele Salvatores (realizador de "Mediterrâneo", que ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 92).

A mensagem de Saramago
No entanto, o reverso da fama e das crítica que faz à Rússia, tanto no livro como nas entrevistas posteriores, são as ameaças: "Quando o livro saiu recebi emails a dizer: 'Vamos matar-te a ti e à tua filha, bla, bla, bla...'

Respondo: não tenho medo. Lutei pela Rússia na Chechénia, matei muita gente, muita gente quis matar-me, fui ferido duas vezes. Não tenho medo de morrer. Se querem matar-me, venham. Tenho armas e proteção policial na Itália e sei defender-me. Se acham que são melhores, venham", explica ao i num hotel em Lisboa, onde esteve a promover o livro.

Sem polícias, mas com cabelo rapado, braços cobertos de tatuagens e polo preto com a inscrição "Pro Patria Italia" que desencorajariam qualquer investida - qual Edward Norton na pele de um neonazi violento em "América Proibida". Lilin desfaz equívocos:

"Sou apolítico, não tenho grandes ideais. Só não gosto de ditaduras." O polo? "É da academia de artes marciais onde sou instrutor na Itália. Ensinamos defesa pessoal a polícias, militares e profissionais."

Mais à frente vai eliminar qualquer traço da personagem de Edward Norton que pudesse restar: "Gosto muito de Saramago. Não pelos livros - tentei ler, mas não consegui -, mas pelos ideais e pelas mensagens."

O elogio do erro
Se Nicolai Lilin e a comunidade dos Urcas da Transnístria se opunham ao comunismo na União Soviética, não era pela ideologia, mas pelas vítimas que iam ficando pelo caminho:

"Desaparecia muita gente na cadeia e se isso acontecia a alguém próximo de mim, a reação era: 'I will fucking finish them!'" .

Mas aconteceu? "Sim, o meu tio foi espancado até à morte por agentes do KGB. Disseram-nos que fôssemos buscar o corpo porque ele tinha morrido de asma. Tinha sete anos, fui à cadeia com o meu avô e o cadáver estava cheio de feridas. Há muitas histórias assim na Sibéria."

Nicolai juntou-se à resistência. Participou em sabotagens e explosões de instituições do regime, enfrentou polícias. Até se fartar. A partir de certa altura quis deixar a União Soviética, mas o serviço militar apanhou-o a meio caminho. Aos 18 anos foi mobilizado para a guerra na Chechénia.

"Estive lá dois anos e três meses. Fiz o que tinha a fazer. Foi duro, mas sobrevivi." Depois da guerra passou por São Petersburgo, onde trabalhou como segurança privado. Em 2003 fixou-se definitivamente em Turim.

"Educação Siberiana" foi publicado seis anos depois. Hoje escreve em italiano e considera-se cidadão de Itália. Já publicou outro livro, "Caduta libera" (sobre a experiência na Chechénia, não editado emportuguês) e está a escrever o terceiro.

Em relação às dúvidas sobre a veracidade das informações históricas apresentadas em "Educação Siberiana" - levantadas pelo jornal italiano "La Stampa" -, o autor esclarece: "Não sou historiador nem fiz pesquisa. Até a minha mãe disse que havia muitos erros factuais no livro. Claro que há: é um romance baseado nas memórias de uma criança."
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