A História, segundo Hollywood


De Tarantino (foto) a Scorsese: quando Hollywood pisca o olho ao revisionismo

por Bernard Henri-Lévy
10.03.2010

A história não é, raramente é, aquilo que o cinema nos mostra, mesmo quando se usam imagens de época. Porque a história no cinema se tornou apenas uma outra forma de ficção


No ano passado já tínhamos tido direito a "Inglourious Basterds", de Quentin Tarantino, em que Hitler morre, não em Berlim, mas em Paris, no incêndio de um cinema. Na revisitação que o filme faz da Segunda Guerra Mundial, os freedom fighters judeus americanos tiravam os escalpes aos nazis que capturavam e talhavam suásticas nas testas dos que deixavam ir em liberdade; o sargento Donny Donowitz, o Urso Judeu, jogava basebol com os crânios das suas vítimas.

E o próprio Hitler transformava-se numa espécie de Grande Produtor, tendo estendido os limites do seu estúdio até à Alemanha e ao resto da Europa.

Quando lhe perguntaram qual o significado intrínseco do filme, Tarantino não hesitou em explicar que, para os anjos exterminadores antinazis cujas "avós" europeias tinham ficado "impotentes" quando os alemães lhes começaram "a bater à porta" durante a Primeira Guerra Mundial, os tempos tinham mudado e "soara a hora da vingança". Tarantino, claro. No seu melhor.

Graças a Deus que o realizador de "Pulp Fiction" e "Cães Danados" não perdeu nada do seu génio. Mas seria difícil não nos perguntarmos o que retiraria deste filme um adolescente moderadamente informado da Califórnia ou do Minnesota, ou até da velha Europa.

Apesar do seu talento (ou talvez por causa dele), era impossível não ver o tipo de "abalo" da verdade histórica que esta obra inevitavelmente provocaria. Antinazismo como resposta dos netos à humilhação sofrida pelas avós? Por outras palavras, a guerra de 1939 como contraponto à de 1914?

Talvez seja inevitável. No fim de contas, quem sabe como morreu Adolfo Hitler? Ninguém lhe filmou a morte, por isso quem sabe se não acabou como mostra o filme?

À medida que a história e a produção avançam, os factos avolumam-se num tal gigantismo de matéria-prima que se tornam difíceis de engolir e cuspir. E acabam por ser apagados pelo grande espectáculo tarantiniano. Assim, porque não haveria uma morte não filmada num Bunker obscuro de Berlim de acabar por dar lugar a esta morte, orquestrada e produzida por um génio cinematográfico?

Teme-se usar a palavra, dada a carga de politicamente correcto que encerra. No entanto, as partidas macabras e joviais de "Inglorious Basterds" encerram um revisionismo real e potencialmente perigoso.

Presentemente, outro gigante do cinema dos EUA, Martin Scorsese, abraçou o material altamente incendiário da história do nazismo.

Ao fazê-lo, abraçou também, há que dizê-lo, uma responsabilidade de tipo idêntico. Também aqui não se põe em causa o talento do realizador nem o espantoso virtuosismo do seu filme "Shutter Island", baseado no romance homónimo de Dennis Lehane, que mistura referências a Hitchcock, Samuel Fuller, Vincente Minnelli e ao injustamente pouco conhecido "Ilha dos Mortos".

Porém, mais uma vez, que dizer da comparação implícita da base de Guantánamo com os campos de extermínio nazis? E que dizer dessa ilha do Diabo, situada no coração dos Estados Unidos (Devil's Island - Wisconsin), onde se diz que o governo reciclou ex-criminosos nazis depois da guerra?

E de Dachau? Que dizer da utilização pelo filme de imagens de Dachau despreocupadamente misturadas com outras de Auschwitz, nomeadamente a da infame inscrição "Arbeit macht frei" afixada sobre o portão? Será por ignorância ou deliberadamente? Que pensar das sepulturas em massa onde os mortos, com colorização cinematográfica, nos fitam com olhos de bonecos de cera ou de plástico, assombrando a mente do herói como um Leitmotiv assustador?

Por fim, como pode alguém deixar de ter um sobressalto quando, durante a deambulação pelo hospital psiquiátrico onde procede a uma investigação, Leonardo DiCaprio abre inadvertidamente a porta de uma câmara de gás vazia e entrevê as bocas da ducha?

Há cerca de 50 anos, o desafortunado Gillo Pontecorvo, no seu filme "Kapo", foi alvo de muito mais fúria devido à cena, um tudo--nada mais insistente, da mão levantada de Emmanuelle Riva, electrocutada no arame farpado do campo de onde tentava fugir.

Ao escrever em "Cahiers du Cinema", Jacques Rivette disse que Pontecorvo era merecedor do seu "mais profundo desprezo", afirmação que perseguiu Pontecorvo até à morte. Dada a reacção a Pontecorvo, deveremos nós deixar passar sem comentários as pilhas de cadáveres cor de rebuçado, "photoshopados" e alindados, quais peças de uma composição de Jeff Koons?

E deveremos permitir que os realizadores continuem a esgravatar nesse fosso que ignora deliberadamente condicionalismos temporais, produzindo imagens que sabemos serem inconcebíveis, que, como fez notar Claude Lanzmann ao referir-se a "Lista de Schindler", foram enfraquecidas, adulteradas, sujeitas a efeitos especiais, digitalizadas?

A verdade é que o nazismo se está a tornar um novo campo de diversão dos "maus rapazes" de Hollywood, cujos magnatas, à semelhança do Deus de Berkeley, que a cada instante renova a sua criação, resolveram que podem decidir o que é real ou não.

E mais: é um desses self-services, nem mais nem menos tabu que qualquer outro, onde se servem todos aqueles que, tendo resolvido que são as histórias que fazem mover o mundo, acham que a realidade já não deve ser senão mais uma forma de ficção.

A Arte sobrepõe--se a tudo. Não a memória. E ainda menos tudo o que é moral e precisa de uma nova New Wave para nos recordar, mais do que nunca, o verdadeiro negócio que é o cinema.

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