Feios, porcos e maus


com Niccoló Ammaniti
07.04.2010

Por Rui Lagartinho

Niccoló Ammaniti escreve uma literatura tão realista, que com ela quase consegue devorar o mundo. Todo este apetite por sangue, suor, lágrimas, mas também por alguns sorrisos, transborda de "Como Deus Manda".

Quando o Istituto Italiano di Cultura convida, a Itália que vive em Lisboa e os lisboetas que gostam de Itália têm por hábito responder presente. Mas desta vez respirava-se acontecimento na embaixada italiana onde duzentas pessoas foram ouvir Niccoló Ammaniti (Roma, 1966) falar do seu livro "Como Deus Manda" (Bertrand), vencedor em 2006 do Stregga, o prémio literário de maior prestígio em Itália e que contribuiu para que o conjunto dos seus livros esteja publicado em 44 países.

Na manhã que se seguiu à festa italiana temos à nossa frente um homem de meia-idade, que na sua aparente reserva contrasta com o turbilhão de emoções de "Como Deus Manda" onde Cristiano Zena, o seu pai e dois amigos planejam assaltar uma caixa multibanco numa noite em que tudo corre mal.

Varrano não existe no mapa, mas não deixa de ser real na sua confluência de auto-estradas, parques de zonas de serviço, bairros de construção recente que se confundem com o progresso possível e um resto de bosque ao fundo. Uma zona de fronteira para personagens no limite.

"Interessou-me recriar esta Itália feia, que aliás podia não ser Itália, estes territórios que julgamos de ninguém mas que no entanto são habitados por gente grotesca e que vive nos limites. Estive tão perto do abismo que quando terminei de escrever este livro, estava mesmo extenuado".

Há cinema por aqui

Como não ficar depois de inventar e conviver meses com Rino, um neo nazi convicto, Corrado Rumitz, também conhecido por Quattro Formaggi, um pescador frustrado desde que a cana de pesca lhe provocou um choque eléctrico que o incapacitou e que passa o dia a comer "junk food", a escutar vozes e a decorar as réplicas de Ramona, uma estrela de filmes porno, ou ainda Danilo Aprea, que viu a mulher fugir depois da morte da sua filha e que desistiu de abrir uma boutique de roupa interior feminina?

Assomamo-nos do fantasma de "Feios, porcos e maus", de Ettore Scola. "Escrevi um romance violento, mas subsistem momentos de humor que funcionam como válvulas de escape de toda esta tensão. E nisso aproximei-me de algumas comédias realistas do cinema italiano dos anos 60, como as realizadas por Dino Risi."

Mas há mais cinema por aqui: para além do conteúdo, há a linguagem que deixou marcas na forma como o romance foi montado. São 230 "takes", que nos deixam em suspenso. Sete dias, com uma longa noite pelo meio. Uma noite trágica, mas também mágica:

"A noite é o meu território de eleição. E é também o ambiente natural de todas as bestas. Eu estou interessado em comparar a forma como os animais se comportam e a forma como nós nos comportamos. Em perceber as suas similitudes. Parecemos muito modernos mas se calhar não é bem assim, pelo menos nos instintos básicos. É também nessa noite, onde há uma violação, que me aproximo de um bosque, metáfora para todos os perigos na literatura infantil. Esta é também uma história com crianças embora nos esqueçamos disso pela forma como se comportam."

Em "Como Deus manda" de cada corpo emana um frenesi de líquidos de que não gostamos de falar, para os quais evitamos olhar. Cheira a bocas podres, a sémen, a sangue:

"O pai desatara ao pontapé à porta. Rebentara com ela a gritar e a arrancar pedaços de madeira com as mãos. Quando entrou no banheiro, esmurrou o espelho e os estilhaços espalharam-se por todo o lado. Feriu a mão e deixou-se ficar muito tempo a sangrar sentado na borda da banheira, a fumar um cigarro." (página 12)

Pai e filho

Antes de viver da escrita, Niccoló Ammaniti quase se tornou biólogo. O desvio deu traquejo ao romancista: "Sempre me interessou o aspecto físico das personagens, a forma como elas reagem quando recebem um murro, ou quando caem na rua, quando lhes dói uma perna, quando começam a sangrar. Estas descrições podem contribuir para trazer o leitor para dentro do livro."

Mas talvez torne mais difícil - este livro é duro para quem sofra de enjoos provocados por imagens fortes - perceber que no meio de tanta violência, no meio de tanto realismo, se esconde uma história de amor filial. É o prémio dos leitores resistentes. Rino é nazi, é alcoólico mas é pai de Cristiano:

"Gosto de perceber como a educação funciona num ser. Não acredito na camaradagem moderna entre um pai e um filho que brincam a ser da mesma geração. Nem no outro extremo de ter um pai que só diz 'sim' ou 'não'. A pequena história de amor entre este pai e o seu filho foi o meu ponto de partida. Esta mistura entre ódio, mal entendidos e o amor desafiou-me."

Um filho de treze anos franzino, frágil que apetece proteger, mas que sabe carregar estoicamente o inferno às costas do princípio ao fim do romance: "A silhueta escura do pai estava atrás da janela e fazia-lhe sinal para se mexer. Enfiou a pistola nas cuecas. O aço frio arrepiou-lhe o escroto. Fez sinal ao pai e encaminhou-se no seu passo incerto para as traseiras da casa enquanto o coração começava a aumentar o ritmo." (página 13)

Não se prevê tamanho auto-controle de sentimentos nos dias de hoje. "Nos últimos anos mudou tanto a gramática dos sentimentos. Antes, éramos educados para vivermos os nossos sentimentos com decoro em privado. Hoje, ensinam-nos que o que é bom é expormos os sentimentos em público. Vivemos uma época em que tudo se deve mostrar. Não me sinto confortável com esta situação."

Percebemos agora melhor o silêncio reservado que antecedeu a entrevista. Uma questão de educação. Como o gelo já está quebrado, arriscamos caminhar sobre ele. Niccoló Ammaniti já podia ser pai:

"Até agora não pude, mas também não sei se quero criar um filho no mundo actual. Estou pessimista. Tive, e tenho, uma vida boa, mas estou sempre preparado para o pior. Não gosto desta ideia de nos comprazermos a viver no melhor dos mundos possíveis, como Pangloss [personagem de 'Candide' de Voltaire]. Isso torna-nos egoístas. E é perigoso. Veja-se o que acontece em Itália: por causa de tanto egoísmo está sem futuro."
http://ipsilon/.