Hollywood fatura com os nazi fanzzine



por Bernard Henri-Lévy
02.09.2009

Não é fácil Hollywood chegar ao fundo das questões em muitos filmes que produz. No entanto é bom que as pessoas entendam que o cinema não esgota as questões de que trata


Os filmes cuja acção decorre durante a Segunda Guerra Mundial - especialmente os que abordam o nazismo e o Holocausto - atraem uma enorme dose de atenção mediática, como se pode verificar pelo furor desencadeado pelo mais recente filme de Quentin Tarantino, "Sacanas Sem Lei", um relato carregado de sangue e vingança de acontecimentos da Segunda Guerra Mundial.

Quando o filme completar o seu percurso pelas salas de cinema, as atenções que actualmente atrai irão inevitavelmente esmorecer. Nessa altura, já distanciados do burburinho, poderemos examinar-lhe os méritos.

Recordemos o lançamento do filme de 2009, "Valquíria". Foi claramente uma coisa boa, porque é sempre bom ver o mundo honrar os seus heróis (o coronel Claus Schenk von Stauffenberg foi a figura central da conspiração falhada para assassinar Adolf Hitler, em 20 de Julho de 1944).

No entanto, este filme, embora fascinante, levanta questões demasiado complexas e delicadas para poderem ser resolvidas num contexto hollywoodesco. Uma delas não escapou à crítica de alguns comentadores alemães: a escolha de Tom Cruise para desempenhar o papel do homem que nos é apresentado como a própria encarnação da honra anti-hitleriana.

Não que o actor tenha alguma vez mostrado qualquer simpatia pelo nazismo. Mas Tom Cruise é um dos membros mais destacados da Igreja da Cientologia, cujos valores têm pouca semelhança com os que ajudaram a derrotar a ideologia nazi.



Tê-lo escolhido para desempenhar o papel de Stauffenberg é, na melhor das hipóteses, um erro - e na pior, como Berthold, o filho de Stauffenberg disse quando soube da escolha do protagonista, um grave, muito grave atentado à memória do pai.

Outra questão, inerente a qualquer empreendimento deste tipo, leva-nos a perguntarmo-nos se a deificação de uma personagem não se fará sempre à custa da precisão, dos matizes e da verdade histórica. O filme retrata bem a integridade de Stauffenberg. Mostra a sua coragem, a elevação da sua visão e a força das suas convicções. Mas o que nos diz acerca dos seus pensamentos?

O que nos revela sobre a sua adesão entusiástica ao nazismo, que tem início em 1933? Porque não mostra as facetas do nazismo a que ele teve de renunciar antes de pôr em execução o plano de assassínio - e, por outro lado, as facetas a que continuou fiel? Como, por exemplo, os preceitos filosóficos de Ernst Junger? Ou de Oswald Spengler?

Teria ele partilhado a mesma hostilidade impiedosa contra Weimar e qualquer noção de democracia de outras figuras gradas do aparelho militar nazi, que se mantiveram irredutivelmente leais ao nacional-socialismo e ao seu frenético anti-semitismo?

Tinha esperança de se livrar de Hitler ou da ideologia hitleriana? De erradicar um tirano ou o próprio princípio da tirania? O plano era destruir o nazismo ou salvá-lo? Por que razão não ilustra aquilo a que chamaríamos o "teorema de Stauffenberg" - a tentativa de se tornar próximo, muito próximo de Hitler para ter a oportunidade de penetrar na Toca do Lobo - (o quartel-general em Rastenburg, na actual zona nordeste da Polónia) - e aí pousar a pasta armadilhada?

E, por fim, corremos um terceiro risco com este filme: o de não ver a floresta da resistência alemã escondida por detrás da árvore Stauffenberg. Em última instância, torna-se evidente que, no que respeita aos oficiais hitlerianos de alta patente, existem diferenças entre os vários conspiradores: o conspirador tardio (Stauffenberg) e os pioneiros (já em 1938, o tenente-coronel Hans Oster e o jurista Hans von Dohnanyi).

Além disso, após a explosão inicial do núcleo do nacional-socialismo, surgiu uma galáxia de partidos resistentes: líderes da oposição como Ernst Niekisch, que começou a afastar--se em 1934; conservadores como o almirante Wilhelm Canaris, que tinham a nostalgia da grandiosidade intacta da aliança, entretanto quebrada, entre Hitler e Estaline; os revolucionários conservadores, cujo protótipo era Hermann Rauschning, o autor da obra "The Revolution of Nihilism."

Mas, acima de tudo, havia pessoas simples, como o carpinteiro Johann Georg Elser, que liderou uma tentativa de assassinar Hitler em 1939. Havia associações de estudantes dissidentes como a Rosa Branca que distribuía literatura anti-nazi durante a guerra.

Havia católicos, socialistas, judeus. A obra de Hans Fallada, "Every Man Dies Alone", a que Primo Levi chamou o melhor livro sobre a resistência anti-nazi na Alemanha, tinha por heróis trabalhadores normais de Berlim.

E, enfim, havia os irredutíveis da linha de Weimar que preferiam, como Willy Brandt, arriscar-se a serem acusados de "deserção" a enfrentarem a desonra irreparável de terem vestido o mesmo uniforme da Wehrmacht que os conspiradores de 20 de Julho. Diluir todas estas diferenças é uma armadilha dos preguiçosos.
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