Samba & Renda

Por Ana Carolina Athanásio

Os diversos usos da cidade de S. Paulo pelos sambistas e a relação entre o território, a cultura e a tradição das comunidades que fazem parte do “mundo do samba”, foram temas de um estudo na USP.

Pelo levantamento dos locais ligados ao samba verificou-se que a maior concentração de escolas de samba ativas na capital paulista está localizada nas regiões Leste e Norte. O samba está relacionado à ideia de vínculo a um lugar ou a um grupo.

Em seu doutorado – As Territorialidades do Samba na Cidade de São Paulo – o geógrafo Alessandro Dozena estudou as maneiras como os espaços paulistanos são apropriados pelos sambistas, que podem considerar o samba não apenas um gênero musical, mas um estilo de vida.


- O samba é mais que um estilo musical, tem importância na formação e na afirmação da identidade das comunidades e está relacionado à ideia de vínculo em relação a um grupo ou lugar específico – explicou o autor.

Pela pesquisa, há uma relação simbólica e subjetiva entre a população e os espaços destinados ao samba – como a quadra de uma escola de samba, por exemplo. As pessoas veem o lugar onde o samba acontece como algo que faz parte de suas vidas e contém muitas representações de suas memórias coletivas.

Essa identificação com o lugar desloca muitas pessoas de um ponto a outro da cidade para freqüentar determinada roda ou escola de samba. “Uma das características das práticas sociais atreladas ao samba é a mobilidade e a fluidez.


Essa constante fluidez pode ser observada na dinâmica das escolas e rodas de samba, movimentos e projetos de samba – e foi algo importante que acompanhou o processo de urbanização paulistana”, revela Dozena.

A expansão do samba na Paulicéia ocorreu junto com seu processo urbanização.


Até meados do século XX, os sambistas se concentravam na região central, mas com as transformações nessa época, impulsionadas pela especulação imobiliária, muitas pessoas que faziam parte do “mundo do samba” foram expulsas e passaram a morar distantes do centro.

Com isso, os hábitos, cultura e tradições foram se espalhando e possibilitando a configuração de outros territórios destinados ao samba.

“Há uma característica interessante nas práticas sociais que acompanham o samba. É comum encontrar pessoas que saem da região oeste para participar de rodas de samba ou eventos de escolas de samba na região leste.


Nesse ponto, é possível observar que o pertencimento comunitário muitas vezes ultrapassa a noção de bairro. A questão da configuração de redes de sociabilidade é muito forte e torna possível essa intensa e incessante mobilidade no mundo do samba”, explica o trabalho.

Essa dispersão da população para as periferias intensificada a partir da década de 50 foi um fator importante que influenciou a maior concentração de escolas de samba nas regiões Leste e Norte de São Paulo, observada atualmente.

Segundo Dozena, “as escolas de samba começaram a ganhar força nos bairros periféricos a partir dessas modificações ocorridas na cidade.


Antes, estavam concentradas nos bairros centrais e, com a expulsão dos sambistas do centro, muitas escolas de samba foram criadas e mantidas até hoje em bairros marginais de São Paulo”.

Das 80 escolas de samba ativas em São Paulo, 32 estão localizadas na região leste e 20 na região norte. Já a região oeste e a região central têm cada uma apenas 7 escolas.

Para o geógrafo, “um fator relevante para a baixa concentração de escolas de samba na região oeste – na área próxima aos bairros Morumbi, Itaim Bibi e Moema – é a presença de blocos carnavalescos ao invés de escolas de samba além da baixa densidade de vida comunitária aí manifestada. Já em outros bairros, como o Capão Redondo, a presença do rap é marcante e coexiste com o samba”.

Outro dado interessante da pesquisa é o da distribuição das escolas de samba ativas por classes econômicas.


A maior concentração de escolas situa-se em bairros das classes B2 e C (Critério de Classificação Econômica Brasil – Associação Brasileira de Estudos Populacionais), deixando evidente a correlação entre a renda e a distribuição espacial das escolas de samba.

Das 80 escolas de samba ativas em 2009, 62 estão localizadas em regiões pertencentes às classes B2 e C e apenas 2 estão em bairros de classe A2.


“É clara a territorialização das escolas de samba em regiões de renda média ou baixa e a pouca presença de quadras de escola de samba e rodas de samba nos bairros mais ricos”, diz o pesquisador.

Fonte – Agência USP

"Terminar amizade é mais difícil que largar namorado"

Um estudo recente da Universidade de Manchester. Inglaterra, concluiu que é mais fácil terminar um relacionamento romântico do que uma amizade.

Segundo a pesquisa, terminar uma amizade gera muito mais culpa. Por isso, mesmo que a convivência com o amigo ou amiga tenha deixado de ser interessante, as pessoas preferem "arrastar" a relação ou passam a evitar o amigo até afastá-lo, em vez de ter uma conversa franca.

"Existe um sentido de 'dever' (com o amigo) do qual é difícil sair", disse ao jornal britânico "Telegraph" a professora Carol Smart, que dirigiu a pesquisa.

"A ética da amizade é forte, o que torna difícil terminar a relação, mesmo que ela tenha deixado de ser prazerosa, pois nos sentimos terrivelmente culpados por isso".

Amizades se arrastam porque falta coragem para terminar a relação
Quem é dispensado de uma amizade sofre com o sentimento de traição e vê aumentar os problemas com autoconfiança, diz a pesquisa.

O estudo envolveu mais de 200 pessoas, que registraram suas impressões, detalhando os altos e baixos de amizades mantidas por elas, além de incluir casos ilustrativos de seus problemas com amigos.

Sinais de que uma amizade desandou:


A pessoa não liga mais em datas importantes, como aniversários, Natal, Ano-Novo, nascimento de filho ..

Ela responde a recados ou email de forma bem breve, quando responde..

Não pergunta mais detalhes da sua vida pessoal..

Quando você a encontra casualmente, ela dá um jeito de ir embora rápido..

Ela não compartilha mais detalhes pessoais, você é a última a saber que ela vai morar fora do Brasil, por exemplo..

Quando você quer combinar de sair, ela fala: "vamos combinar"..

Livro conta a história do massacre de mulheres na ditadura

“Direito à Memória e à Verdade” conta a história de
45 mulheres assassinadas e desaparecidas
durante a ditadura de 1964-1985.

Foi lançado na PUC em São Paulo seis dias antes do aniversário de 46 anos do golpe de 31 de março de 1964.

Esse é o terceiro volume da série, originada a partir do relatório Direito à Memória e à Verdade.

Relatos de 27 sobreviventes de diferentes organizações de resistência à ditadura, armadas ou não fazem parte da história.

Algumas estavam grávidas, outras amamentavam, todas foram torturadas e, não raro, estupradas.

Na apresentação, o ministro dos Direitos Humanos Paulo Vannuchi faz uma previsão: “Pode mudar opiniões de quem ainda resiste à elucidação profunda de todos esses episódios como passo necessário a uma reconciliação nacional”.

Em seguida, a ministra de Política para Mulheres, Nilcéa Freire, defende ampla apuração da verdade:

“A superação dos fantasmas que ainda assombram nossa história recente exige confrontá-los. Para exorcizá-los, será preciso retirá-los dos lugares onde estão escondidos, nomeá-los, olhá-los nos olhos e compreender os mecanismos que os permitem surgir”.

As mortas e desaparecidas são divididas em três grupos: de 1964 a 1974, incluindo o período agudo da repressão; de 1974 a 1985, já no processo classificado de “distensão”; e a Guerrilha do Araguaia, no final da década de 1960 e início da de 1970, na região do rio Araguaia.

Todas são acompanhadas de fotos mostrando rostos jovens, alguns quase infantis, como o de Aurora Maria Nascimento Furtado (1946-1972), que estudava Psicologia na USP e militava na UNE (União Nacional dos Estudantes) e na ALN (Ação Libertadora Nacional).

Conforme o livro, “Aurora foi submetida a pau de arara, choques elétricos, espancamentos, afogamentos e queimaduras, além da “coroa de Cristo”, fita de aço que vai sendo apertada aos poucos e esmaga o crânio. Morreu no dia seguinte”. Seu corpo, porém, foi encontrado no subúrbio do Rio crivado de balas.

Entre os depoimentos de sobreviventes, há o de Damaris Lucena, que hoje vive em S. Paulo. Era feirante e militante da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária). Foi presa quando seu marido morreu a tiros à queima-roupa em 1970.

“Minha boca ficou toda inchada, cheia de dentes quebrados (…). Minha vagina ficou toda arrebentada por causa dos choques. Meu útero e minha bexiga ficaram para fora. Eu tive de fazer operação em Cuba, levei 90 pontos e estou viva por milagre”, relata.

O livro é mais um esforço para apuração e divulgação da verdadeira história da repressão política na ditadura, enquanto o governo expande a procura de restos mortais de desaparecidos para além da região do Araguaia.

Brasil pede desculpas a 15 mulheres

15 mulheres foram declaradas anistiadas políticas
e receberam desculpas do governo brasileiro

O Dia Internacional da Mulher 2010 teve significado diferente para 15 mulheres que tiveram seus processos de anistiadas julgados na sessão especial da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

A sessão foi marcada por emoções fortes, lembranças das torturas, dos estupros e do terror sofrido pelas mulheres.

“Ser anistiada lavou a minha alma”, disse Celeste Fon, ao receber a sentença.

Funcionária concursada do Banespa, ela foi presa junto com o pai e o irmão no final dos anos 60. Na empresa foi perseguida, vigiada pelo regime, impedida de ter contato com outras colegas do banco, mesmo após a anistia de 1979.

Maria Alice Albuquerque Saboya também foi anistiada. Antes da proclamação, ela leu e entregou à Comissão de Anistia uma carta endereçada aos jovens, contando o que passou nos anos de ditadura e no exílio.

Maria Alice foi presa aos 20 anos, junto com o marido, acusada de contribuir para formação de um partido político contrário ao regime. Foi torturada e viu colegas sendo torturados.

“É muito pior ver tortura que ser torturada. Tenho gravada em minha memória a vez de um prisioneiro que pedia: ‘Pelo amor de Deus, me matem’”, disse Maria Alice.

Ela divulgou uma carta aos jovens pedindo para que eles lutem em defesa do Plano Nacional de Direitos Humanos, proposta do governo que prevê a criação da Comissão da Verdade para apurar os crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura.

“Essa história não é minha, essa história não é nossa. É a história de um país que precisa ser contada para que aprendamos com ela”, afirmou.

Para a psicóloga fluminense Vitória Lúcia Martins Pamplona, sua anistia significou “uma vitória simbólica de todas as mulheres”.

“Que não se repita jamais o que aconteceu conosco durante a repressão”, disse Vitória, que foi demitida da Infraero, presa e torturada na década de 70.

Além de Vitória, Celeste e Maria Alice, mais 12 mulheres foram declaradas anistiadas políticas e receberam desculpas do governo brasileiro.

Esta foi a terceira vez que a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça homenageou as mulheres no dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher.

Também tiveram seus direitos de anistiadas reconhecidos pelo Estado:

Ana Lima Carmo Montenegro,
Celeste Fon,
Maria Cândida Raizer Cardinalli Perez,
Isa Mariano Macedo,
Maria Beatriz de Albuquerque David,
Maria da Glória Lung,
Denise Fraenkel Kose,
Vera Lúcia Marão Sandroni,
Elizabel Maria da Paixão Couto,
Vera Lucia Carneiro Vital Brazil,
Vitória Lúcia Martins Pamplona Monteiro,
Maria Inêz da Silva,
Maria Albertina Gomes Bernaccio, e
Helena Sumiko Hirata.

Você come veneno todo dia..

por Silvio Caccia Bava*

O Brasil é o maior mercado de agrotóxicos

do mundo e representa 16%
da sua venda mundial.

Em 2009, foram vendidas aqui 780 mil toneladas, com um faturamento estimado da ordem de 8 bilhões de dólares. Ao longo dos últimos 10 anos, na esteira do crescimento do agronegócio, esse mercado cresceu 176%, quase quatro vezes mais que a média mundial, e as importações brasileiras desses produtos aumentaram 236% entre 2000 e 2007.

As 10 maiores empresas do setor de
agrotóxicos do mundo concentram
mais de 80% das vendas no país.

Esses produtores viram ameaçadas suas novas metas de faturamento com o anúncio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de que se propõe a reavaliar o uso de 13 produtos agrotóxicos, vários deles já proibidos há anos nos EUA, na União Europeia, e em países como Argentina, Nigéria, Senegal, Mauritânia, entre outros, como o acefato e o endossulfam.

Os motivos dessa proibição são evidentes, a contaminação de alimentos, de trabalhadores rurais, e do meio ambiente, causando, literalmente, o envenenamento dos consumidores, a morte de trabalhadores rurais e a destruição da vida animal e vegetal.

Em solicitação ao Ministério Público para a proibição de um desses agrotóxicos – o Tamaron – os então deputados federais Fernando Dantas Ferro, Adão Preto e Miguel Rosseto denunciam que 5 mil trabalhadores rurais morrem, a cada ano, intoxicados por venenos agrícolas, sendo que muitos mais são afetados de maneira grave pela ingestão dos componentes químicos desses produtos.

Frente à disposição da Anvisa de reavaliar produtos como Gramoxone, Paraquat, Tamaron, Mancozeb, Monocrotfos, Folidol, Malation e Decis, o Sindag – Sindicato das Indústrias de Defensivos Agrícolas – recorreu ao Judiciário, solicitando que não sejam
publicados os resultados das reavaliações.

Houve mesmo iniciativas no Judiciário que pretendiam proibir os estudos da Anvisa que verificavam a segurança das substâncias de 99 agrotóxicos.

O fato é que o setor ruralista, com o Ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes à frente, a bancada ruralista e os fabricantes de agrotóxicos se puseram a campo contra a iniciativa da Anvisa, e mesmo contra a própria Anvisa e o seu papel fiscalizador.

Segundo documento obtido pela ABRANDH – Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos, o Ministério da Agricultura quer ser o responsável pela avaliação e registro dos produtos agrotóxicos.

Para Rosany Bochner, especialista em toxicologia da Fiocruz, instituição parceira da Anvisa no trabalho de reavaliação dos agrotóxicos, “o Brasil está virando um grande depósito de porcarias. Os agrotóxicos que as empresas não conseguem vender lá fora, que têm indicativo de problemas, são empurrados para a gente”.

Atualmente os agrotóxicos estão em reavaliação tanto pela Anvisa quanto pelos Ministérios da Saúde e Meio Ambiente.

E espera-se que até o final do ano seja divulgada uma nova lista dos agrotóxicos que podem continuar sendo vendidos e os que serão banidos do território brasileiro.

Ainda não existe uma ação integrada desses organismos públicos responsáveis por essa tarefa de fiscalização, mas segundo Agenor Álvares, diretor da Anvisa, a integração é algo indispensável, até para enfrentar a proposta do setor ruralista, que é inaceitável.

* Silvio Caccia Bava é editor de Le Monde Diplomatique Brasil e coordenador geral do Instituto Pólis.

Fechar a Bolsa?

Criticar o mercado financeiro revela
o que o discurso empresarial se esforça para

acobertar: o enriquecimento rápido.
Claro, nem todos os empreendedores são afetados
por essa avidez desenfreada. Mas o fato é que
essa instituição conseguiu a proeza de instalar
na sociedade o fantasma da fortuna-relâmpago


por Frédéric Lordon*

Por pouco, a crise global não nos fez esquecer que as finanças “dos mercados” – denominação meio idiota, mas necessária para distingui-la – parecem desenvolver-se num universo fechado, longe de tudo e principalmente do resto da economia – ou seja, das finanças acionárias, aquelas dos proprietários dos meios de produção e, em última análise, dos assalariados.

Foi preciso uma onda de suicídios, tão delicadamente diagnosticada por Didier Lombart, presidente da France Télécom, para lembrarmos do desgaste cotidiano das finanças acionárias, cujas imposições de rentabilidade financeira foram implacavelmente convertidas em diminuição dos custos salariais, destruição metódica de qualquer possibilidade de reivindicação coletiva, intensificação extenuante da produtividade e degradação contínua das condições materiais, corporais e psicológicas de trabalho.

Contra todas as tentativas de contestação, é preciso repetir a ligação de causa e efeito que leva do poder acionário – do qual mais nada nas estruturas presentes do capitalismo retém as demandas extravagantes – a todas as formas de desamparo salarial.

E se as mediações que separam as duas extremidades da cadeia fazem com que se perca de vista a própria cadeia, se essa distância permanece o melhor meio da negação, nada pode apagar completamente a unidade de uma “causalidade de sistema” que a análise expressa com clareza1.

Sob esse aspecto, só o diretor do jornal Libération, Laurent Joffrin, juntando a inércia intelectual ao desejo de não ser contrariado, para sustentar que não há ideias na esquerda2.

O SLAM (Shareholder Limited Authorized Margin; margem acionária limite autorizada) é uma ideia3. A abolição da cotação contínua e sua substituição por um indexador mensal ou de vários semestres é outra4. Todavia, chega uma hora que se considera a questão de outra maneira: e se fechássemos a Bolsa?

Com o surgimento de ligações em cadeia entre as Bolsas, passando pela incessante repetição “Dow Jones-Nikkei”, logo essas deixaram a esfera das instituições sociais para se tornar algo quase natural, algo cuja supressão é simplesmente impensável.

É verdade que duas décadas e meia de repetição sistemática contínua fizeram bem para esse tipo de naturalização e, principalmente, para explicar que uma economia “moderna” não poderia conceber seu financiamento de outra maneira que não fosse por mercados e, entre eles, mercados de ações.

É claro que, para continuar a se desenrolar, esse discurso precisa calar todas as destruições correlatas do exercício do poder acionário, e a simples comparação de seus supostos benefícios econômicos e de seus custos sociais reais seria suficiente para mostrar de maneira inteiramente diferente o balanço da instituição “Bolsa”.

Aliás, a divisão em benefícios econômicos e custos sociais escapam a uma boa parte do fenômeno, pois as tendências à compressão salarial indefinida que resulta da exigência de rentabilidade acionária têm efeitos macroeconômicos.

O subconsumo crônico, que dela resulta, leva os geniais estrategistas das finanças a proporem às famílias a “acertarem as contas” utilizando o crédito, que se tornou a bengala permanente da demanda insuficiente – e cuja consequência é conhecida.

Financiamento

Ora, não significa muito dizer que as promessas positivas da Bolsa são duvidosas. Será que sem ela não há financiamento da economia?

Ou fundos próprios para empresas, que estariam então condenadas à insolvabilidade? E menos ainda desenvolvimento de start-ps, precursoras das revoluções tecnológicas?

No papel, o plano do conjunto impressiona. Agentes (os poupadores) têm recursos financeiros em excesso e procuram aplicações enquanto outros (as empresas) estão em busca de capitais: a Bolsa é essa forma institucional apropriada que poria todo esse belo mundo em contato e realizaria o encontro mutuamente vantajoso das capacidades de financiamento de uns e das necessidades de outros.

Ela faria melhor ainda: empregando recursos permanentes (diferentemente do endividamento, os capitais próprios, levantados pela emissão de ações, não são reembolsáveis), estabilizaria o financiamento e minimizaria o seu custo.

É, mas nada disso é confiável.

E a Bolsa financia as empresas? No ponto em que estamos, são sobretudo as empresas que financiam a Bolsa!

Para compreender essa reviravolta inesperada é preciso não perder de vista que os fluxos financeiros entre empresas e “investidores” têm duplo sentido e que se os segundos subscrevem emissões das primeiras, eles não deixam, simetricamente, de lhes absorver regularmente dividendos (em quantidade crescente) e, sobretudo, o buy-back, “inovação” característica do capitalismo acionário pelo qual as empresas são levadas a recomprar suas próprias ações para aumentar mecanicamente o lucro por ação e, com isso, levar os valores da Bolsa (portanto, a mais-valia dos investidores) à alta.

A coerência na incoerência do capital acionário, aliás, atinge picos, pois ao impor normas de rentabilidade financeira exorbitantes, ele força a abandonar um bom número de projetos industriais, incapazes de “ultrapassar o limite”, deixando as empresas com recursos financeiros inutilizados.

E logo denunciados como “capital ocioso”, com solicitação de restituí-lo instantaneamente aos “proprietários legítimos”, os acionistas – “uma vez que eles não sabem utilizá-lo, que nos devolvam!”

A partir de então, o que sai das empresas para os investidores predomina sobre o que se movimenta em sentido inverso... e dá seu sentido e sua legitimidade à instituição Bolsa.

Os capitais levantados pelas empresas tornaram-se inferiores aos volumes de dinheiro absorvidos pelos acionistas, e a contribuição líquida dos mercados de ações ao financiamento da economia tornou-se negativa (quase nula na França, mas colossalmente negativa nos Estados Unidos, nosso modelo para todos5).

É de se continuar estupefato diante de um resultado como esse quando, ao mesmo tempo, o volume financeiro que se investe nos mercados da Bolsa não para de crescer. O paradoxo é, de fato, muito simples de esclarecer: na falta de novas emissões de ações para absorvê-lo, esse volume simplesmente leva ao aumento da atividade especulativa nos mercados denominados “secundários” (os mercados de revenda das ações já existentes).

Além disso, sua expansão constante não tem por efeito financiar projetos industriais novos, mas alimentar a inflação dos ativos financeiros já em circulação. Os valores sobem e a Bolsa vai muito bem obrigado, mas o financiamento da economia real torna-se cada vez mais estranho: o jogo fechado em si mesmo da especulação é suficiente para fazer sua felicidade e, de fato, o volume da atividade nos mercados secundários esmaga literalmente o dos mercados primários (os mercados de emissão).

Especulação

Que a Bolsa como instituição de financiamento, por isso diferenciada da Bolsa como instituição de especulação, tenha se tornado inútil, as empresas é que poderiam falar melhor. Mas esse problema simplesmente não se coloca para as pequenas e médias, que não estão cotadas mesmo sendo maioria da produção e de emprego: elas passam bem sem a Bolsa.

E o que é mais surpreendente, as grandes empresas apelam muito pouco para ela também – salvo quando são tomadas pela vontade de entrar no jogo das fusões e das Ofertas Públicas de Compra (OPA).

Pois quando se trata de encontrar financiamento, o paradoxo permite que os grandes do CAC40, a Bolsa francesa, e do Dow Jones sejam vistos com mais frequência numa instituição bastante arcaica... o banco!

Uma saborosa ironia admite que haja aí menos o efeito de uma reticência filosófica do que da própria exigência acionária, que vê em toda nova emissão o inconveniente da diluição, portanto da baixa do benefício por ação.

Em suma, o triunfo do poder acionário consiste em dissuadir as empresas que pudessem se financiar na Bolsa!

E o que resta de financiamento bruto produzido pela Bolsa é disponibilizado ao custo vantajoso prometido por todos os discursos da desregulamentação? Bem, sabemos da taxa de juros que se deve pagar anualmente.

O “custo do capital” (neste caso, o custo dos fundos próprios) é uma questão menos evidente para se compreender. Por definição, os capitais próprios (levantados por emissões de ações) não têm taxa de remuneração predefinida como a dívida. Isso não quer dizer que não custem nada!

Mas, então, quanto? Muito sintomaticamente, a teoria financeira não pára de se interessar pelo “custo do capital”... mas sob o ponto de vista exclusivo do acionista! Isso não diz nada sobre o que custa concretamente à empresa financiar-se, aumentando ações mais do que obrigações, ou ainda indo ao banco.

Ora, o que ele custa à empresa está contido em três elementos: os dividendos e as buy-backs são os dois primeiros, aos quais é preciso acrescentar também os custos de oportunidade ligados aos projetos de investimento descartados por rentabilidade insuficiente, ou seja, todos os lucros aos quais a empresa teve de renunciar, sob a injunção acionária, a investir.

Tudo isso, no entanto, não se coloca facilmente sob a forma de uma “taxa” que possa ser conferida diretamente com a taxa de juro a fim de oferecer uma comparação de cada elemento dos custos de diferentes formas de capital (fundos próprios versus dívida).

O fato de que a dívida seja reembolsável e não os capitais próprios é uma primeira diferença perturbadora; inversamente, o dividendo é pago eternamente sobre as ações bem depois do fim do ciclo de vida do investimento que elas serviram para financiar; em assembleia-geral, as ações conferem um poder que a dívida não dá.

Na falta de comparação direta, pode-se pelo menos fazer uma análise diferencial e observar que um dos dois custos, o dos fundos próprios, teve uma evolução crescente: as buy-backs que eram desconhecidas desenvolveram-se em proporções consideráveis; quanto aos dividendos, pode-se medir seu crescimento na parte que ocupam no PIB francês, em que passaram de 3,2% a 8,7% entre 1982 e 2007.

Retomemos: contribuição líquida negativa e contribuição bruta fora do preço em que ela tinha sido prometida a custos sacrificados... Pergunta-se o que resta à Bolsa para continuar existindo – exceto os interesses particulares do capital financeiro, uma força inteiramente admirável, é verdade. A resposta é: outras ameaças e outras promessas.

A ameaça agita o espectro de uma “economia sem fundos próprios”. À primeira vista, ela tem peso, especialmente num período em que se denuncia, com toda razão, o crescimento descontrolado das dívidas privadas.

Ora, recusar às empresas os benefícios da Bolsa não significa reenviá-los aos mercados em que se negociam as obrigações ou ao crédito bancário, ou seja, mais dívida ainda e todo o poder aos banqueiros, espécie que a crise tornou tão simpática6?

Mas uma economia sem Bolsa não é absolutamente uma economia sem fundos próprios. Muito ocupada em se vangloriar de seus próprios charmes, a Bolsa acabou se esquecendo de que o essencial dos fundos próprios não vem dela, mas das próprias empresas, que “transportam” seus lucros para o ano seguinte, como dizem os contadores: todo ano, o fluxo de lucro da empresa vem aumentar o estoque de capital inscrito em seu balanço.

No entanto, diremos que a participação de fundos próprios externos (portanto, os dos acionistas) reveste uma importância particular precisamente quando a empresa vai mal e, por si só, não produz mais tantos fundos próprios internos por meio do lucro e de “transporte para o ano seguinte”.

O salvamento da empresa em dificuldade não revela a última virtude da intervenção acionária? A bela ideia é que, em geral, os que assumem a empresa para restabelecê-la se associam para investir o menos possível e para conduzir seu pequeno negócio, seja embolsando as subvenções públicas, seja prevendo revender algumas partes de comum acordo, seja beneficiando-se da arbitragem judicial para reestruturar as dívidas e se desembaraçar do assalariado.

Start-ups

Quando o círculo começa a se fechar e a lista dos supostos benefícios mingua, ouve-se o grito desesperado: “e as start-ups?!” As start-ups, a revolução tecnológica em andamento, a que nos deu a internet, aquela que enfim nos oferece logo genes renovados, como fazê-los desabrochar sem a Bolsa?

Certamente, foi possível se enganar um pouco no que se refere à realidade de seus benefícios, mas tudo será perdoado quando forem descobertos seus verdadeiros e insubstituíveis prodígios, promessas de futuros brilhantes. Talvez seja nesse registro profético do futuro tecnológico que o discurso sobre a Bolsa encontre seu último reduto.

Ora, é certo que o financiamento das start-ups parece escapar ao sistema financeiro clássico, e principalmente bancário. A particularidade dessas empresas nascentes está, de fato, ligada à dificuldade de seleção que ela apresenta aos possíveis financiadores pelo próprio fato do caráter inédito de suas apostas técnicas e da enorme incerteza que delas decorre, por falta de referências passadas com as quais compará-las.

Conhecemos o argumento: de cada dez start-ups financiadas, nove serão terríveis bolhas, mas talvez a décima, uma magnífica pepita que, bem conduzida até a Bolsa, terá êxito.

Ou seja: enriquecerá seus acionistas no início, denominados business angels (os anjos dos negócios), e os reconfortará por suas perdas anteriores. Essa economia da compensação, própria das novas empresas tecnológicas, tornará então “indispensável” a saída pela Bolsa e impossível o financiamento pelo crédito.

É preciso reconhecer que o argumento tem algum sentido. Não é preciso muita imaginação para vislumbrar uma taxa de juro que não seja mais fixada, mas definida como certa parte dos lucros, possivelmente passível de ser revista (na alta) nas primeiras etapas do ciclo de vida da empresa.

Se ela for efetivamente uma loteria, comprovará isso por seus benefícios, e essa compensação alegrará o banqueiro assim como aquela da Bolsa alegrava o business angel.

No entanto, aprofundando um pouco mais, acabaremos caindo na realidade menos gloriosa dos motivos que fazem manter os discursos gerais do financiamento com capital das start-ups e dos heróis tecnológicos.

A entrada na Bolsa tem como finalidade essencial enriquecer milhões de criadores de empresas e seus acompanhantes “anjos”. Acredita-se que sejam movidos pela ideia geral do progresso técnico, pelo bem-estar material da humanidade e pela paixão pelo empreendimento: na maioria das vezes, eles não têm outra ideia a não ser a de enriquecer o mais rápido possível e de se aposentar antecipadamente – não há teste mais devastador do que ver o que, retirada a promessa da fortuna com a Bolsa, restaria das tropas de valentes empreendedores.

Cortes com o rosto cheio de espinhas da nova economia, quantos não têm a ideia fixa de ganhar a vida bem rapidamente com um pequeno negócio passível de ser revendido pelo dobro do preço patrimonial?

Cabe observar que é da própria essência do capitalismo que os agentes não desenvolvam alguma atividade para nada. Sem dúvida, mas por um lado se poderia, consequentemente, nos evitar o sermão empresarial; por outro, uma coisa é desejar se enriquecer com a criação de sua empresa, outra coisa é só se dedicar a ela com a condição (mesmo que apenas em estado de esperança) de se enriquecer sem reservas, como se tornou a condição implícita sine qua non dos criadores de start-ups.

E é verdade: não é mais a remuneração do trabalho, ou até mesmo a renda proveniente do lucro da empresa que pode enriquecer nessa escala, mas a especulação na Bolsa e somente ela.

E eis o ponto final do discurso da Bolsa. Ela não é uma instituição para financiar empresas – elas não investem nela salvo para dela extraírem seu cash-flow; ela não é a rocha de uma “economia de fundos próprios” – esses vêm fundamentalmente de outros lugares, das próprias empresas; ela não é a providência que salva as start-ups da atrição financeira – poderia muito bem fazer de outra maneira; ela é uma máquina de fazer fortunas.

E pronto. Assim, criticar a Bolsa leva, sem dúvida alguma, a encontrar as verdadeiras forças motrizes que o discurso empresarial se esforça para acobertar: é somente uma questão de enriquecimento.

Não que todos os empreendedores sejam, por princípio, afetados por essa avidez desenfreada – aqueles que realmente têm vontade de construir alguma coisa são movidos por outras forças e não têm necessidade da fortuna patrimonial para desenvolver uma atividade.

Mas somente a Bolsa conseguiu instalar no corpo social esse fantasma, a partir de então mentalidade da fortuna relâmpago, legítima recompensa das elites econômicas.

Fechar a Bolsa não tem, portanto, somente a virtude de nos livrar do caráter nocivo acionário com base no custo econômico dos mais fracos, mas também o sentido de extirpar a ideia da fortuna-flash, que se tornou referência e motor para os bem-nascidos.

A Bolsa como espelho da fortuna é o operador imaginário, com efeitos bem reais, do deslocamento das normas do êxito monetário, e ele não é um ambicioso cujo caminho não passa por ela – para os outros, existe a Loteria, e para mais ninguém, relacionado a essa norma, o trabalho.

Além disso, a Bolsa tem essa notável propriedade de concentrar num único lugar o caráter nocivo econômico e simbólico, o que se deveria ver como uma razão suficiente para planejar lhe dar alguns sérios golpes.

Os argumentos anteriores não encerram definitivamente a discussão do fechamento da Bolsa, e certamente há ainda muitas objeções a refutar para se convencer de maneira decisiva juntar o gesto à palavra.

Apenas revelam que, pelo menos, é tempo de começar a pensar nisso.

* Frédéric Lordon é economista, autor de Jusqu'à quand? L'éternel retour de la crise financière (Até quando? O eterno retorno da crise
financeira), Raisons d'Agir, Paris, 2008.

Notas
1 La crise de trop. Reconstruction d’un monde failli, Paris, Fayard, 2009, capítulos 4 e 5.
2 “La gauche ne dit rien sur la crise financière”, ele hostilizou ainda no dia 20 de setembro de 2008 no France Inter.
3 “Enfin une mesure contre la démesure de la finance, o SLAM!, Le Monde diplomatique, fevereiro de 2007.
4 “Instabilité boursière: le fléau de la cotation em continu” no blog “La pompe à phynance”, site do Le Monde diplomatique.
5 Entre 2000 e 2005, a contribuição líquida dos mercados de ação para o financiamento de empresas francesas foi da ordem de apenas alguns bilhões de euros. No mesmo período, nos Estados Unidos, ela passou de 40 bilhões para 600 bilhões de euros! Somente a crise financeira interrompeu (provisoriamente) esses movimentos maciços de buy-back (Relatório anual da Autorité de marchés financiers, Paris, 2007).
6 Como sempre, é a oportunidade de se dar conta de que as transformações radicais se dão menos “por partes” do que por “blocos de coerência”. Refazer as estruturas das finanças necessita responsabilizar os mercados, mas também a estruturas bancárias. Sobre essa questão, ver La crise de trop, op.cit., cap. 3.

Le Monde Diplomatique Brasil - Copyleft

Livro lançado na França acusa Psicanálise de ineficaz

Le Crépuscule d'une idole, l'affabulation freudienne,
de Michel Onfray, lança contra o pai da Psicanálise uma lista
de críticas - de homofóbico a charlatão


A um jornal, o autor afirmou que a Psicanálise tem o mesmo poder de cura da homeopatia, o magnetismo, a radiestesia, a massagem do arco do pé ou o exorcismo feito por um sacerdote.

O filósofo francês, que se diz ateísta e anarquista de esquerda, é fundador da Universidade Popular na cidade de Caen, tornou-se best seller e foi devidamente ameaçado de morte ao criticar as religiões monoteístas em seu "Tratado de Ateologia".


Ele classificou as religiões como contos de fada.

- Contra rabinos, padres, aiatolás e mulás, mantenho a preferência pelos filósofos", escreveu.

Onfray também acusa Freud de fracassar na cura de vários pacientes e alterar seus registros para parecer que o tratamento teve sucesso.

O livro polêmico traz uma observação conhecida dos psicanalistas - a de que as teorias freudianas são limitadas pela época e local de criação - a Viena burguesa da virada para o século 20.

- Freud tentou tornar universal uma doutrina que no máximo servia só para ele, diz o filosofo.

Sexo na mídia induz violência à mulher

Estudo relaciona o excesso de conteúdo sexual na mídia
à posição da mulher como objeto.

Um estudo inglês afirma que a exposição de crianças e adolescentes a conteúdo sexual na mídia vem reforçando a ideia da mulher como objeto de desejo e torna-a alvo de violência doméstica.

O relatório Sexualização dos Jovens, da psicóloga Linda Papadopoulos, encomendado pelo Ministério do Interior britânico, diz que os jovens estão cada vez mais expostos a conteúdo relacionado à sexualidade por meio de revistas, televisão, internet e aparelhos de celular, sem que os pais consigam controlar isso.

Segundo ela, esse conteúdo está "legitimando a idéia de que as mulheres existem para serem usadas e de que os homens existem para usá-las".

Nesse contexto, a pesquisadora entende que a posição da mulher como alvo de violência doméstica acaba virando comum e até aceitável.

Da sexualidade à violência

O estudo diz que as crianças estão sendo cada vez mais retratadas como adultos, enquanto adultos são infantilizados, o que confunde as noções de maturidade e imaturidade sexual.

Além disso, tanto mulheres quanto homens são levados pela mídia a buscar um ideal de aparência física "fora da realidade", o que resulta em "insatisfação com o próprio corpo, um reconhecido fator de risco para a autoestima, para depressão e distúrbios alimentares".

"Um tema dominante em revistas parece ser a necessidade das garotas de se apresentarem como sexualmente desejáveis para atrair a atenção masculina", diz o estudo.

Seguindo esse mesmo raciocínio de subserviência feminina, a violência contra as mulheres acaba sendo banalizada.

O relatório aponta que, desde 2004, a exibição na TV britânica de cenas de violência contra a mulher cresceu 120%, enquanto as de agressão contra adolescentes aumentou 400% no período. Além disso, no cinema, 75% dos personagens e 83% dos narradores são homens.

Papel dos pais e da escola

Papadopoulos entende que essa lógica explica os resultados de uma pesquisa do Ministério do Interior britânico divulgada em abril.

A análise revelou que 36% dos britânicos acreditam que em caso de estupro a mulher deve ser parcialmente responsabilizada se estiver bêbada, e 26% pensam assim no caso de a vítima estar usando roupas sensuais.

A psicóloga cita ainda o dado de que uma em cada três garotas britânicas entre 13 e 17 anos já teve de fazer sexo contra a sua vontade, enquanto 25% delas já sofreram algum tipo de violência física.

Para reverter esse quadro, o relatório defende que os pais acompanhem mais de perto como seus filhos usam a internet e seus celulares e que o Estado tome medidas para coibir a banalização da sexualidade.

A pesquisadora também recomenda que as escolas tragam essa discussão sobre a igualdade de gênero para as salas de aula.

Fonte - BBC Brasil

Argentina troca estátuas

O escultor Andrés Zerneri quer os verdadeiros heróis retratados em estátuas nas ruas de Buenos Aires. Para isso faz campanha de coleta de objeos de cobre geralmente chaves – para construir os monumentos.

A 14 de junho de 2008, com vários movimentos sociais, sindicatos e partidos de esquerda, Andrés Zerneri inaugurou em Rosário a primeira estátua de bronze argentina em homenagem a Ernesto “Che” Guevara. A inauguração marcou os 80 anos do nascimento naquela cidade do médico e líder da revolução cubana junto com Fidel Castro.

A estátua de quatro metros consumiu três toneladas de bronze, ou cerca de 75 mil chaves. Che aparece como na foto de Alberto Korda, de boina, cabelos revoltos e olhar voltado para o futuro. Para recolher o bronze sindicatos operários e entidades civis fizeram uma campanha nacional de doação de objetos.

O escultor vai repetir o plano e desta vez homenageará os povos indígenas na figura da “Mulher Originária” – nome do projeto – de 10 metros de altura e milhares de quilos de bronze. É assim que Zerneri deseja marcar as comemorações do Bicentenário da Independência da Argentina neste 2010.

Todos os povos indígenas estarão representados no monumento na bandeira Wiphala (bandeira multicolor quadriculada que representa a união de todos os povos indígenas), enrolada em seus braços.

A obra será inaugurada em outubro próximo. A “Mulher Originária” só será considerada concluída pelo autor quando colocada no lugar da estátua do general Julio Roca, herói nacional oficial por ter dizimado uns 20 mil indígenas, principalmente do povo Mapuche no séc. 19 para “conquistar” o território da Patagônia.

O bronze começou a ser recolhido em escolas, sindicatos, bibliotecas, clubes e fábricas. A divulgação do projeto é feita de boca a boca. “A estátua é feita de bronze, mas não pedimos recursos porque não queremos interferência nem na construção, nem na divulgação. Essa é a forma mais difícil, mas mais legítima de realizar uma obra verdadeiramente coletiva”.

- Há décadas somos educados com histórias oficiais, como a de que Rocca é um herói assim como San Martí. Mas essa história é fundada em racismo, o próprio general chamava os indígenas de subhumanos – diz.

O apelo da obra sensibilizou nomes importantes do cinema argentino e tem o apoio de atores como Ricardo Darín e Julieta Diaz.

O espaço público do argentino é o campo de disputa do artista. A sua invasão e a releitura da história fazem parte do processo de sua criação coletiva. “Queremos mostrar que é possível reinventar a história dos monumentos impostos pelo poder, construídos sem nos consultar. Podemos inverter: o povo se organiza, constrói e doa o monumento ao Estado”, propõe Zerneri.

Militares começam a falar a Verdade..

Jarbas Passarinho abre o bico e acusa Ernesto Geisel

O tenente-coronel Jarbas Passarinho fez parte da cúpula do poder durante a Ditadura Militar (1964/1985). Foi ministro do Trabalho e Previdência Social no governo Costa e Silva; ministro da Educação, no governo Emílio Garrastazu Médici e ministro da Previdência Social no mandato do general João Figueiredo.

Militante da ARENA (depois PDS), partido de sustentação do regime autoritário, ocupou cargos como de governador do Pará e de Senador.

Aos 90 anos, até hoje defende a Ditadura justificando a perseguição política, as prisões arbitrárias e a ação violenta dos órgãos de repressão.

Como a penitenciar-se com a proximidade do fim de sua vida terrena este mesmo Passarinho, faz a expiação de sua cumplicidade nos crimes cometidos pelo regime militar em entrevista concedida a Maria Inês Nassif e Paula Simas, e publicada no Valor, no caderno Fim de Semana, pág. 4.

Trechos da entrevista, postada no site Conversaafiada

"Eliminar fisicamente adversários seria uma decisão estrita de um presidente da República, segundo Passarinho. Ele reconhece que essa decisão foi tomada no fim do Governo Médici … Mas acha que, no caso de Geisel, as mortes e os desaparecimentos foram mais numerosos e menos justificáveis."

" … o Massacre da Lapa (chacina que, em 1976, praticamente dizimou o comitê central do PCdoB). Quem fez isso ? E quem matou o Comitê Central do Partidão? Não foi o Médici, não. Isso foi uma política de Estado? É lógico que foi!
"Uma ordem para não fazer prisioneiros só podia vir do presidente da República, de mais ninguém."

" … no Governo Geisel houve uma política de Estado de extermínio dos adversários quando os militares já haviam feito, na gestão anterior, a limpeza da guerrilha urbana, que era o que efetivamente ameaçava o regime militar.

" … a guerrilha do Araguaia (1969-1975, do PCdoB) foi utilizada
como pretexto para continuar o regime autoritário. Era um movimento inexpressivo. … (n)uma área cercada, que poderia resultar até na morte por fome dos guerrilheiros … era um grupo de 60 pessoas completamente isolado …"

O massacre da mulher brasileira


Rogamos que a memória dessas mulheres
seja enaltecida neste dia 8 de março de 2010


Centenário do Dia Internacional da Mulher


Militantes políticas
assassinadas
pelo regime militar

Maria Ângela Ribeiro
Alceri Maria Gomes da Silva
Marilene Villas Boas Pinto
Nilda Carvalho Cunha
Iara Yavelberg
Ana Maria Nacinovic
Aurora Maria Nascimento
Gastone Lúcia Pereira da Silva
Lígia Maria Salgado Nóbrega
Lourdes Maria Wanderley Pontes
Maria Regina Lobo Leite
Paulina Reichstul
Ranúsia Alves Rodrigues


Anatália de Souza Alves de Melo
Soledad Barret Viedma
Sônia Maria de Moraes Lopes
Maria Auxiliadora Lara Barcelos
Neide Alves dos Santos
Ana Rosa Kucinski Silva
Áurea Elisa Pereira Valadão
Dinaelza Soares Santana
Dinalva Oliveira Teixeira
Heleni Telles Pereira Guariba
Helenira Rezende de Souza Nazareth

Ieda Santos Delgado
Ísis Dias Oliveira
Jana Morone Barroso
Lúcia Maria de Souza
Luiza Augusta Garlippe
Maria Augusta Thomaz
Maria Célia Corrêa
Maria Lúcia Petit da Silva
Suely Yumiko Kamayana
Telma Regina Cordeiro Corrêa
Walquíria Afonso da Costa
Maria Regina Marcondes Pinto
Jane Vanini


Fonte – Comissão dos Desaparecidos Políticos

A decadência da Poesia

A poesia não se vende e, portanto, não tem mais importância.
É claro que esse gênero literário não é o único que perdeu
“fatias de mercado” na cena cultural atual.

por Jacques Roubaud *

A situação

No século XXI, agora solidamente estabelecido, a poesia continua a perder espaço: nos jornais – o Le Monde des livres, suplemento literário do diário francês Le Monde, pode passar um ano inteiro sem publicar resenhas de livros inéditos de poesia contemporânea; nas livrarias, que, na maioria, não contam mais com uma seção dedicada a obras desse gênero; e na televisão, que tampouco se interessa pelo assunto.

Uma espécie de incômodo impedia, até pouco tempo, as autoridades culturais de tirar proveito desse fato social. Mas elas finalmente se deixaram levar, talvez sem perceberem.

Essa situação é uma consequência da quase inexistência econômica da poesia – pelo menos dessa que se escreve atualmente. A poesia não se vende e, portanto, não tem mais importância. A poesia não tem mais importância e, portanto, não se vende. É claro que esse gênero literário não é o único que perdeu “fatias de mercado” na cena cultural contemporânea.

O romance, a literatura em geral e o próprio livro foram afetados. Mas, no caso da poesia, estamos diante de uma forma extrema de desaparecimento.

De quem é a culpa?

Há quase um século – e com uma obstinação tocante – a responsabilidade por tal circunstância é atribuída aos próprios poetas. Expõe-se uma série de acusações para explicar e justificar a desafeição comercial: os poetas contemporâneos são difíceis, elitistas, a poesia é uma atividade fora de moda e ultrapassada.

Os poetas são narcisistas, não se dão conta do que realmente acontece no mundo, não intervêm para libertar reféns ou para lutar contra o terrorismo, não fazem diminuir a desigualdade social, não se mobilizam para salvar o planeta e não falam a mesma língua de todo mundo. Eis porque não os lemos. Eles mesmos são os culpados por isso.

É inútil comentar tais acusações. Digamos apenas que quem se interessa por poesia, geralmente conhece e gosta de Victor Hugo, Baudelaire, Rimbaud, Apollinaire, Eluard, Aragon, Char e Michaux, por exemplo, mas acha que os poetas de seu tempo são difíceis, escrevem de maneira incompreensível e, assim, não os lê.

Parece que esses leitores estão na mesma situação de alguém afetado por uma grave doença e que, depois de ficar um mês na cama, enfrenta grandes dificuldades para permanecer em pé. Ou seja, lemos cada vez menos e o que, por acaso, tentamos ler, parece impenetrável.

O Verso Internacional Livre


A situação descrita acima teve efeitos diversos sobre os poetas. A primeira consequência foi precipitar uma evolução formal, que está em andamento há muito tempo. Houve o verso livre padrão dos surrealistas, que substituiu o verso metrificado-rimado tradicional, sua demolição pela vanguarda dos anos 1960 (Denis Roche) e a conversão, bastante difundida, ao Verso Internacional Livre, importado, como tantos outros produtos, dos Estados Unidos.

O VIL é um verso não metrificado nem rimado e que, geralmente, ignora as características da tradição poética de determinada língua. Ele “muda de linha”, fugindo às rupturas sintáticas demasiado fortes.

Podemos fazer VIL em quase todas as línguas. Qual é a vantagem? Evitar, sem grande dificuldade, as terríveis “taxas alfandegárias da tradução”, que desencorajam os editores e os tradutores, e escapar do confinamento nas “fronteiras do dialeto”, algo temível na era da globalização.

O VIL ainda é muito presente na cena poética mundial, em todo festival internacional de poesia, toda antologia poética ou revista literária. Suas exigências protocolares são demasiado débeis, o que promove um deslizamento cada vez mais claro em direção a uma fase (a última?) da evolução formal: aquela em que o próprio verso não é mais considerado necessário.

Já havia essa tendência – nos anos 1990, eu a constatei muitas vezes – de desaparecimento do verso, presente em grande número de poetas, que liam seus poemas como prosa, ornada retoricamente pela voz, pois é preciso ver que se trata de poesia. Nessas condições, por que não escrever simplesmente prosa?

A poesia, então, e isso é particularmente perceptível nos poetas que mais se destacam na França ou nos Estados Unidos, se faz com prosas curtas, mas não visivelmente narrativas: a ausência de uma trama narrativa clara é, assim, o único indicador de que o texto pertence ao gênero da poesia.

Ainda é possível ser poeta?

Mas por que, nessas circunstâncias, manter a afirmação de pertencer à categoria “poeta”? As respostas são, com frequência, contraditórias e ambíguas. A fraqueza da poesia no terreno econômico provoca um desprezo mais ou menos evidente em relação aos que ousam reivindicá-la.

Trata-se de um movimento natural do tipo de sociedade em que vivemos e em que vive o poeta. A poesia não se dedica muito aos acontecimentos desagradáveis que se reproduzem por toda parte – aliás, em minha opinião, esse não é seu papel.

Mas, se por acaso ela tem a audácia de fazê-lo, lhe responderemos, como Stálin teria respondido a alguém que lhe falasse da oposição do papa à sua política: “O Vaticano? Quantas divisões?”.

Para as pessoas, e para a “quarta página dos jornais”, onde ficam os anúncios publicitários, ser poeta é, no fundo, rigorosamente nada.

Aliás, se dirá, a poesia, coisa nobre, não é mais o que fazem os poetas. Eles não a merecem. A poesia está em outros lugares: na canção, no pôr-do-sol, no romance etc. Pois a poesia, para as pessoas, só é concebível quando a encontramos onde ela não está.

Isso pode ser chamado, a partir de uma expressão de Yannick Liron, de efeito fantasma. A poesia está morta para todos os fins práticos, mas sua aura permanece.

Não surpreende que, para muitos, declarar-se poeta, em nossos dias, tenha algo de ridículo e até de vergonhoso. Os efeitos de decomposição formal mencionados se conjugam com o sentimento de inadequação ao mundo e com um desejo legítimo de reconhecimento social, levando um grande número de poetas a não apresentar seus livros como poesia, a negá-los.

E assim, inevitavelmente, excelentes poetas, desencorajados pela ausência de repercussão (vendas inexistentes; espera de um ou dois anos para ver seus livros publicados por editoras que não sejam minúsculas ou financiadas pelo próprio autor; o silêncio infalível da imprensa etc.), passam a se dedicar a outras atividades: ao romance, ao teatro, ao cinema ou à ópera.

Produtos de substituição

Sendo a poesia inútil, ou seja, invendável, passada, ultrapassada, atividade linguística fora de moda, gênero literário moribundo, muita gente pensou que seu desaparecimento não seria ruim, e que seu lugar seria reservado a um novo produto, livre das pressões do passado literário, “absolutamente moderno”.

A isso se dedicou no passado a vanguarda que instaurou em seu lugar o TEXTO. O “texto” desapareceu, aparentemente sem deixar rastros, mas pudemos notar um reaparecimento recente, sob a forma do documento poético.

Geralmente de dimensões modestas, lhe permite ser muito mais acessível na tela do que o romance, por exemplo. (Quem já leu Em Busca do Tempo Perdido em uma tela de computador?)

Não farei prejulgamentos sobre o futuro do e-book, que nos prometem regularmente há vários anos, mas que ainda não tem uma existência muito garantida. O “mercado”, esse personagem todo poderoso que reina no mundo, lhe prepara o terreno, por exemplo, começando a esvaziar as bibliotecas públicas.

Contudo, podemos constatar que encontramos muitos poemas na rede mundial de computadores e, que a poesia, por isso, atinge mais leitores que o livro, pois esse é pouco vendido.

Ao mesmo tempo, as leituras de poesia se multiplicaram, e os auditórios têm frequentemente dimensões respeitáveis. A economia, entretanto, uma vez mais, desempenha um papel nesse fenômeno: muitas cidades descobriram que era muito mais barato convidar um ou dois poetas do que um cantor, uma orquestra ou um balé. É nesse contexto que a “necessidade de poesia” encontrou um modo de expressão original: o slam.

Slam

A “necessidade” de andar de bicicleta se manifesta mais subindo sobre uma do que assistindo ao Tour de France3 pela televisão. O sucesso das bicicletas de aluguel em Paris é prova disso. Da mesma maneira, a vontade de entrar em contato com a música pode se realizar no karaokê e na ida a concertos, mas tal realização é sem dúvida mais plena com a participação ativa em um coral ou em uma banda de rock.

A invenção do slam, ao menos inicialmente, se baseava em um postulado explícito: todo mundo é virtualmente poeta.

Todo mundo, portanto, pode “dar uma de poeta”. O slam, se diz, é uma “arte de expressão popular oral, declamatória, que se pratica nos lugares públicos como bares ou associações, sob a forma de encontros e de justas oratórias”.

Extraio esta passagem de uma apresentação do slam: “a palavra slam designa, na gíria americana, ‘o tapa’, ‘o impacto’, termo emprestado da expressão ‘to slam a door’, que significa literalmente ‘bater a porta’. No quadro da poesia oral e pública, trata-se de pegar o ouvinte pelo colarinho e de ‘bater’ nele com as palavras, as imagens, para sacudi-lo, emocioná-lo”.

O slam pode ser identificado por várias características:

– Ele é oral

– Ele não tem, a priori, intenções artísticas – prova, segundo seus iniciadores, de seu caráter democrático

– É uma arte de improvisação. Dessa forma, restabeleceria o contato com a poesia tradicional popular

– Se supõe que ele faça renascer “um velho gênero literário da Idade Média: a ‘tenson’ (gênero poético medieval praticado pelos trovadores da Occitânia), em que dois poetas se lançam em um desafio oratório sobre um assunto previamente determinado”.

Tal genealogia prestigiosa repousa sobre um contrassenso: a tenson dos trovadores era infinitamente erudita e supunha um público capaz de apreciá-la. O mesmo acontecia com a poesia tradicional improvisada, que se apoiava em práticas muito antigas, utilizando formas complexas e regras restritivas.

É impossível se aproximar de tais modelos no estado de ignorância geral em relação à poesia que existe hoje. Por isso só encontramos, na produção “slamista”, fragmentos de poesia clássica privados de suas condições de existência, métrica e ritmo.

A rima acordou de seu longo sono, mas desceu ao estado mínimo, no qual reina nas composições do ensino primário. Notamos reminiscências escolares decrépitas e, principalmente, a expressão dos sentimentos mais rasos, das emoções indiscerníveis daquelas presentes nas novelas.

O vrum-vrum


O slam, sem dúvida, não apresenta um perigo muito grande para um exercício menos elementar da poesia. O mesmo não acontece em relação ao fenômeno que denomino “vrum-vrum”.

Trata-se da invasão do campo da poesia pelo que foi chamado de “poesia de performance” e que, em estreita colaboração com os “atores culturais” públicos ou privados, tomados por uma devoradora paixão pelo “espetáculo vivo”, tende a se tornar o modo privilegiado de existência da poesia, excluindo o escrito em benefício da oralidade.

Vemos assim, cada vez mais, nas manifestações que se declaram “poéticas” – festivais internacionais de poesia, por exemplo –, “poetas” cuja atividade apresentada ao público consiste em rolar embaixo de uma escada; rasgar uma grossa lista telefônica em cena; produzir, com ajuda eletrônica, sequências sonoras inusitadas e admiráveis que não incluam uma única palavra.

Quando a língua é chamada para contribuir,
em um enorme número de casos, o
texto produzido é medíocre
.

Todas essas manifestações são respeitáveis, às vezes impressionantes, não raramente de grande qualidade artística. Mas por que chamá-las de “poesia”? Por que não denominá-las música, ginástica, número de circo, sketch, canção, balé, striptease?

Uma das obras reclamadas como emblemáticas pelos adeptos do vrum-vrum, a Ursonata, de Kurt Schwitters, se anuncia exatamente como música e não como poema. Certamente é a quase inexistência da poesia na economia que permite tal ridículo desvio. Um “poeta” desse tipo, que só apresenta sons, não precisa temer a concorrência feroz que encontraria caso desejasse se impor no campo musical.

Ler e dizer

Eu não sou profeta e não sei se o vrum-vrum se tornará ou não a única forma reconhecida de poesia. Sem ir até esse estado extremo, me parece que há o risco de se estabelecer a dominação esmagadora da dimensão oral em detrimento do livro e mesmo da tela.

Isso seria uma amputação e uma regressão. Ora, existe hoje na França, como sempre existiu, poesia; muito boa poesia. Difícil ou não, que fala de tudo, de você, de nada, e que inventa, renova, surpreende, encanta.

A encontramos nos livros, revistas, gravações sonoras, vídeos; nas livrarias (elas existem) que não renunciaram a apresentá-la, a apoiá-la, a vendê-la. Leia-a, copie-a, aprenda-a, como se fazia no passado.

Esse artigo serve para defender o seguinte ponto de vista: que a poesia tem lugar em uma língua; que ela é feita com palavras – sem palavras não há poesia; que um poema deve ser um objeto artístico da língua com quatro dimensões, ou seja, composto para uma página, para uma voz, para um ouvido, e por uma visão interior.

A poesia deve se ler e dizer.

* Jacques Roubaud é poeta, romancista e matemático

Fonte - Le Monde Diplomatique

Pasolini século 21

Trinta anos após seu assassinato, o cineasta e escritor italiano
é mais atual que nunca. Ele soube fazer de sua arte
a busca original de uma alternativa tanto ao capitalismo

quanto às velhas formas de combatê-lo

por Guy Scarpetta*


Em 2 de novembro de 1975, Pier Paolo Pasolini foi selvagemente assassinado, em um terreno baldio, próximo a Ostia. Por ocasião do trigésimo aniversário de sua morte, surgiram numerosas publicações [1], testemunhando a fascinação que o escritor e cineasta italiano continua a exercer.

As próprias circunstâncias do crime, ainda não totalmente elucidadas, só contribuem para desenvolver, a seu respeito, uma verdadeira lenda negra - da qual emana uma imagem propriamente mitológica, a do anjo do mal, do herege perseguido, do último grande artista maldito.

Já é tempo de superar tal imagem - e de ver, antes de mais nada, em Pasolini, através da excepcional diversidade dos registros que ele percorreu (poesia, romances, cinema, ensaios críticos e teóricos, intervenções jornalísticas) um formidável exemplo, vivo, paradoxal, singular, de intelectual engajado.

Ainda é preciso um entendimento a respeito desse termo, coberto por toneladas de ferrugem, e largamente desacreditado, hoje, por todos os defensores, mais ou menos disfarçados, da ordem estabelecida.

Pasolini, evidentemente, não era nem um "intelectual de partido" (dócil, encarregado de aplicar a cartilha), nem um "intelectual orgânico" no sentido de Antonio Gramsci (encarregado de contribuir para a hegemonia cultural do "bloco histórico" pretendente do poder), nem mesmo um escritor engajado segundo o modelo sartriano (detentor do sentido da história, e subordinando qualquer prática de expressão às exigências de um combate coletivo).

Ele era, antes, alguém para quem a tarefa de um artista ou de um intelectual, a partir do momento em que se quer solidário aos "danados da terra", é a de colocar em crise e subverter as concepções de mundo dominantes, de explorar o não-dito das representações convencionais (incluídas, se for o caso, as de seu próprio campo), de fazer surgir aquilo que foi repelido do consenso social e cultural - sem nada ceder, jamais, sobre a sua singularidade (o que Juan Goytisolo, hoje, chama de "intelectual sem mandato" [2]) .

Ir além do "engajamento" comunista


É assim que Pasolini, embora não tenha jamais renegado completamente o engajamento comunista de seus anos de formação, também não deixou de experimentar a necessidade constante de ir além, ou de exceder, o que ele chamava de "conformismo dos progressistas".

Daí, por exemplo, sua insistência - na época em que o comunismo oficial, institucional, apostava principalmente no proletariado organizado das cidades industriais - no mundo camponês (com seus códigos, seus valores específicos), ou no subproletariado dos subúrbios urbanos (forma de resistir aos pretensos imperativos da História, de se focar sobre o que ela tende a marginalizar ou a excluir) ; ou ainda seu interesse pelo Terceiro Mundo (no qual, segundo ele, "já existem algumas formas de tomada de consciência que contradizem, ao mesmo tempo, o racionalismo marxista e o racionalismo burguês"), ou por certos movimentos da esquerda radical norte-americana, como os Black Panthers, reputados de "atirar seus corpos na luta", de ultrapassar os esquemas revolucionários clássicos.

Rapidamente ele compreendeu que a cultura progressista do pós-guerra, nascida do combate antifascista, tinha dali esgotado suas funções ("O tempo de Brecht e de Rossellini acabou").

Esse marxismo heterodoxo está também no coração do engajamento cultural e artístico de Pasolini. Muito rapidamente, ele compreendeu que a cultura progressista do pós-guerra, nascida do combate antifascista, tinha dali por diante esgotado suas funções ("O tempo de Brecht e de Rossellini acabou").

Mas não se tratava de ceder ao purismo e ao formalismo das vanguardas literárias dos anos 1960 (na Itália, por exemplo, os poetas do "Grupo 63"), a quem ele acusou de levar uma luta abstrata, inofensiva, "puramente lingüística", de serem prisioneiras de um modo de vida "pequeno-burguês", e de esconder por trás de suas proclamações antinaturalistas um puro e simples "terror a respeito da realidade".

Ponto chave: o engajamento, para Pasolini, procede também da experiência direta, do modo de viver, da implicação subjetiva, e física, na realidade (proximidade, aqui, com alguém como Jean Genet). E essa implicação é o que passa tão bem em sua poesia lírica, ambígua, escandalosa, em seus romances (onde a crônica vivida para coexistir com livros inclassificáveis, confrontando os registros mais heterogêneos), ou na sua arte do cinema.

Isso porque o interesse do cinema, para ele, era o de ser uma escritura diretamente ligada ao real, uma forma de captar e de revelar a realidade como uma linguagem (portanto desnaturalizá-la) - cortando e isolando planos (daí seu caráter explicitamente "fetichista") no grande "plano-seqüência ininterrupto da vida".

Disso procede, em definitivo, uma das obras cinematográficas mais perturbadoras e audaciosas do século XX: não apenas um autêntico cinema autoral (ou o que ele designava, para se distanciar das normas narrativas do cinema comercial corrente, como "cinema de poesia"), mas ainda uma arte eminentemente paradoxal, ao mesmo tempo primitiva e maneirista, ao mesmo tempo realista (no seu amor concreto, sua atitude de fazer perceber a "linguagem dos corpos") e hiper-cultivada (em sua maneira de convocar e de misturar, no segundo grau, elementos originários da pintura antiga, da música clássica ou popular, da literatura, em uma soberba impureza).

E isso, seja tratando-se de reintroduzir a tragédia no mundo do sub-proletariado (Accatone [Desajuste Social], Mamma Roma); de ressuscitar os mitos de uma Grécia bárbara, pré-clássica (Édipo Rei, Medéia); de restituir à narrativa cristã sua violência e sua carga subversiva (O Evangelho Segundo Mateus); de elaborar estranhas parábolas, nas quais a graça se emaranha à obscenidade, para desestabilizar o conformismo ambiente (Teorema, Uccellacci e uccellini [Gaviões e Passarinhos], Porcherie [Pocilga]); de explorar o de fora da cultura burguesa, seus antecedentes populares ocultos (Decameron, Os contos de Canterbury) ou sua alteridade oriental (As Mil e Uma Noites); ou de impulsionar a obscuridade de Sade no contexto do fascismo agonizante (Saló - 120 dias de Sodoma).

Tantos filmes que continuam, mais de trinta anos depois, a nos perturbar, por sua enigmática beleza - e que só fazem acusar, por contraste, o estado atual do cinema, majoritariamente submetido à debilidade mercadológica da indústria de entretenimento (uma obra assim, hoje, não teria simplesmente nenhuma chance de existir).

O que ele procurava na nostalgia do mundo rural, das culturas pré-burguesas e extra-ocidentais não era diferente do que o atraía no terceiro mundo ou no subproletariado das favelas romanas

O moderno nem sempre é avançado


Pasolini era reacionário? Sustentar isso, como por vezes se faz, é um perfeito contra-senso.

O que é verdade é que ele algumas vezes sustentou opiniões "indefensáveis", opostas àquilo que se apresentava como moderno ou progressista (em relação aos movimentos estudantis de 1968, por exemplo, ou ao debate dos anos 1970 sobre o aborto).

Mas, revendo hoje essas intervenções polêmicas, percebemos que elas visavam, antes de mais nada, a provocar os intelectuais da esquerda conformista (incluídos aí aqueles que eram seus amigos, Alberto Moravia, Ítalo Calvino, Umberto Eco) - e a levá-los a trair, em suas reações, justamente o que seu "progressismo" aparente poderia ter de fundamentalmente bem pensante.

Mais genericamente, é certo que Pasolini, o qual idolatrava Rimbaud, jamais acreditou que fosse necessário ser "absolutamente moderno".

Que ele jamais considerou que a nostalgia, mesmo largamente imaginária (nostalgia da Natureza, do Maternal, da Inocência Perdida), fosse também uma forma de se opor a um mundo onde a modernidade pode perfeitamente se identificar com a barbárie.

Nesse sentido, o que ele iria procurar na nostalgia do Friuli, do mundo rural, de uma diversidade cultural e dialética ameaçada pelo "progresso", ou naquela das culturas pré-burguesas (Boccaccio, Chaucer) e extra-ocidentais (Les Mille et une nuits [As Mil e Uma Noites]) não era muito diferente do que lhe chamava a atenção no Terceiro Mundo, ou no subproletariado das borgate [3] romanas: uma maneira de se apoiar sobre as "forças do passado" para melhor combater o presente quando este se torna destrutivo.

Passagem, se quisermos, de uma posição progressista (adesão cega à modernidade, troca do velho pelo novo) a uma posição de resistência (incluindo a resistência ao novo, quando este é sinônimo de opressão suplementar, de conformismo, de uniformidade).

O golpe de gênio de Pasolini (que o distingue radicalmente, diga-se de passagem, de todos os "neo-reacionários" de hoje), foi precisamente ter sabido transformar a nostalgia em força crítica.

Acredito que é desnecessário insistir a respeito de que uma tal atitude, isolada em sua época, pode ser hoje espantosamente atual: em uma situação na qual as piores regressões (especialmente as sociais) se apresentam como "modernizações" (é a própria retórica da vulgata liberal) pode ser revolucionário, então, contestar o tipo de "modernidade" imposta pela tirania do mercado?

Um último ponto, enfim, em que o engajamento de Pasolini aparece como prodigiosamente antecipatório - e quase profético. É aquele - que praticamente só ele descobriu em sua época [4] - relativo à verdadeira "mutação antropológica" que se passa sob seus olhos, pela qual a burguesia no poder estendeu e reforçou sua dominação.

Pasolini cantou, em sua "Trilogie de la vie [Trilogia da Vida]", a liberdade sexual (sem culpa) de um mundo popular não ainda subjugado pelo puritanismo burguês.

Desde a estréia desses três filmes, ele experimentou a necessidade de os "abjurar": precisamente porque se deu conta de que o poder dos anos 1970 podia perfeitamente aceitar a "liberação sexual", e promover nesse domínio a permissividade, a partir do momento em que cada um assume o papel de consumidor, e que o sexo torna-se uma mercadoria como as outras.

É assim que o sexo deixa de ter um valor de escândalo (pois o puritanismo desaparece): ele é por sua vez absorvido, integrado, não é mais tabu (portanto mais sagrado: a mercantilização de todas as atividades humanas é uma "profanação"), ele destaca, a partir de então, o novo conformismo do consumo.

Ele percebe que o poder pode aceitar a liberação sexual e promover a
permissividade, desde que cada um assuma o papel de consumidor e o sexo torne-se uma mercadoria como as outras

"É intolerável ser tolerado"


Pasolini foi sensível a isso, certamente, a partir de sua própria homossexualidade, cuja dissolução na norma ele teme ("É intolerável, escreveu, ser tolerado") - e que valia para ele, evidentemente, muito mais como um desafio que como um fator de identidade:

"Não é tanto o homossexual que sempre condenaram, mas o escritor sobre o qual a homossexualidade não serviu como meio de pressão, de chantagem para recolocá-lo na linha [5].

Mas o mais importante é a constatação mais vasta que ele opera a partir daí: existe um formidável poder ao mesmo tempo econômico e midiático (os donos do mundo são também os da sua representação), cujo horizonte é impor o reino do rebanho generalizado, da middle class planetária, dessacralizadora e uniformizadora.

Nisso, como em tudo para ele, há uma percepção em princípio física: os subproletários das borgate são levados a sonhar em entrar para a norma, a ter vergonha de seus códigos antigos, a repudiar sua cultura específica. Eles começam a parecer com os estudantes da burguesia (têm os mesmos comportamentos, os mesmos jeans, os mesmos cabelos longos, quase a mesma linguagem).

O terceiro mundo passa também a se moldar na pseudo-universalidade do Ocidente tecnicista e consumista, a começar pelo terceiro mundo interno à Itália (o mezzogiorno).

O "Centro" impõe um modelo único, exclusivo, em particular graças a esse terrificante instrumento de homologação e de normatização que é a televisão (que se torna, para ele, o principal inimigo, a ponto de pregar sua "destruição").

É, diz ele, o "nivelamento brutalmente totalitário do mundo", "a ordem degradante da horda". Em suma, o que o fascismo histórico fracassou em realizar, o novo poder conjugado do mercado e das mídias opera docemente (na servidão voluntária): um verdadeiro "genocídio cultural", no qual o povo desaparece em uma massa indiferenciada de consumidores submissos e alienados.

A constatação é sombria, dilacerante - sem, no entanto, deixar de ser exata: tudo isso, trinta anos depois, não fez mais do que se aprofundar.

A resistência, em resposta — pensava Pasolini — deve ser tanto subjetiva quanto política. Não há outra maneira de contestar essa "ordem", a não ser afirmar ferozmente a singularidade, o desvio, a irredutibilidade.

[1] As seguintes obras de (ou sobre) Pasolini tiveram edições brasileiras:

A hora depois do sonho (Bloch, 1968)
O pai selvagem (Civilização Brasileira, 1977)
Caos - Crônicas políticas (Brasiliense, 1982)
Amado meu (Brasiliense, 1984)
Teorema, (Brasiliense, 1984)
Meninos de rua (Brasiliense, 1985)
Os jovens infelizes - org. Michel Lahud (Brasiliense,1985)
Vida clara, de Michel Lahud (Companhia das Letras/Ed. UNICAMP, 1993)
A Paixão pelo real - Pasolini e a crítica literária, de Maria Betânia Amoroso (Edusp, 1997).

[2] A respeito de Günter Grass. In Juan Goytisolo, Cogitas Interruptus, Fayard, Paris, 2001.
[3] N. T. - favelas na periferia de Roma.
[4] À exceção, notável, de Guy Debord e dos situacionistas - que Pasolini praticamente não conhecia.
[5] Podemos imaginar o riso de Pasolini se ele soubesse que é hoje um dos objetos de fetiche dos Gays and Lesbian studies - ele, para quem a sexualidade (homo ou hetero) era antes de tudo um fenômeno singular, irredutível a qualquer medida comum
("O erotismo", dizia, "é um fenômeno excessivamente individual"; "Há abismos entre os que pertencem à mesma família erótica") - e que era, por isso mesmo, estrangeiro a qualquer orgulho de pertencimento (gay pride).

Fonte - Le Monde Diplomatique

Edgar Rodrigues, pesquisador da classe operária

Por Jorge E. Silva *

Quando chegou ao Brasil em 1951, trazia na bagagem o original de seus primeiros livros: Na Inquisição de Salazar e Fome em Portugal. No entanto, deixava o seu país menos pela fome do que pelo oposição à ditadura de Salazar.

Filho de um militante anarco-sindicalista, Edgar Rodrigues teve de visitar várias vezes seu pai na prisão e tinha a certeza que se continuasse no país também ele acabaria preso.

No Rio de Janeiro, além de recomeçar a sua vida, tratou de publicar os livros contra a ditadura portuguesa, que logo entraram no índex do regime autoritário, embora Edgar Rodrigues não tenha deixado de os fazer entrar clandestinamente no seu país de origem. Por tudo isso só voltou a visitar Portugal vinte anos mais tarde, após a derrubada do fascismo em 1974.

Amigo de José Oiticica, Edgard Leuenroth e de muitos outros velhos militantes e jornalistas anarquistas, logo começou a colaborar na imprensa libertária.

A pedido de jornais do Uruguai, iniciou uma pesquisa sobre a história do movimento operário e sindical no Brasil. Aos poucos, correndo o Brasil, levantando informações com velhos militantes, recolhendo documentos raros, criou um importante acervo de história social, que lhe permitiu escrever alguns livros fundamentais:

Socialismo e Sindicalismo no Brasil (1969), Nacionalismo e Cultura Social (1972) e Novos Rumos (1972), Alvorada Operária (1979) e Anarquistas: Trabalhadores Italianos no Brasil (1989).

Quando poucos pesquisadores se interessavam pela história do movimento operário e, menos ainda, pela período em que nasceu o sindicalismo, Edgar Rodrigues documentou-a em suas obras exaustivamente.

Fornecendo um manancial de informações sobre as origens do sindicalismo e das idéias socialistas no Brasil, que hoje são preciosas para pesquisadores e historiadores.

Esse trabalho silencioso nunca mereceu o reconhecimento aberto dos setores acadêmicos – embora várias teses acadêmicas já tenham sido escritas com base no material e informações fornecidas por ele – já que foi realizado por um autor autodidata e independente, que não se submete aos cânones e regras dos manuais universitários.

Como escreveu Antônio Arnoni Prado "Os intelectuais com honrosas exceções, mantêm uma atitude ambígua face à obra de Edgar Rodrigues. Torcem o nariz, por um lado, reclamando maior rigor teórico; invejam, por outro lado, a riqueza documental de seus livros, quase insuperável, o que o torna passagem obrigatória, para quem se aventura no tema."

Para quem, como Edgar Rodrigues, sempre viveu de seu trabalho e pesquisou e escreveu nas horas vagas seus 1. 500 artigos e 36 livros, o reconhecimento de pesquisadores como Hélio Silva, Foot Hardman e Arnoni Prado é suficiente.

Aos 76 anos, Edgar continua um espectador atento da sua realidade social e mantém a disposição de continuar pesquisando e publicando. Na fila, está a continuidade da obra Companheiros, com biografias de militantes sindicais e libertários, uma coletânea Livre Pensamento e uma longa lista de trabalhos.

A Pequena História da Imprensa Social, que a editora Insular de Florianópolis acaba de publicar é outra dessas suas obras que esteve parada durante anos na estante, esperando um tratamento mais definitivo.

Considerando que não tem mais tempo, nem condições para esperar, Edgar Rodrigues, faz da forma que sempre fez: publica, esperando que seus subsídios e documentos ajudem e inspirem novos pesquisadores, mais jovens, mas não menos independentes e combativos do que ele.

Entrevista

Discreto, esta é a sua segunda entrevista, a primeira foi feita em 1984 pela Folha de S. Paulo, por Arnoni Prado e Foot Hardman.

P - Embora desconhecida do grande público a sua obra de pesquisa social e sobre a história do movimento operário é uma fonte inestimável para qualquer historiador. Como começou essa sua atividade de pesquisador autodidata ?

R - Ainda adolescente ouvi falar em anarco-sindicalismo e anarquismo em casa de meus pais, em Portugal. No começo da ditadura escutava as reuniões clandestinas que se realizavam em nossa casa, começando, então, a entender as idéias que meu pai e seus companheiros debatiam.

Logo me iniciei na leitura de manifestos, jornais e documentos históricos. Pouco depois juntei uns tostões e comprei meus primeiros livros: A Velhice do Padre Eterno do poeta Guerra Junqueiro e Conquista do Pão de Pedro Kropotkin. Quando não conseguia comprar esses livros, copiava-os à mão, coisa que hoje deve ser motivo de espanto para aqueles que embora tenham dinheiro, não sabem o que é ler um livro.

O editor do meu livro Na Inquisição de Salazar disse na apresentação que eu era um pesquisador instintivo, acho que tinha razão. E ele não sabia, ainda, da mala cheia de papéis que trouxe no porão do navio de Portugal. No Rio de Janeiro continuei com a mesma vontade da juventude e logo que pude escrevi a velhos militantes sindicalistas e libertários de fora e dentro do Brasil pedindo documentos e publicações antigas.

Mais tarde percorri vários estados, para entrevistar esses sindicalistas que me davam informações e me ofereciam seus velhos arquivos. Em alguns casos convenci parentes de velhos militantes a me venderem acervos que se estavam perdendo. Esta busca dura até hoje e já lá vão 65 anos...

P - Alguns autores acadêmicos o costumam criticar argumentando com a falta de método e de rigor científico; como você avalia essas críticas ?

R - Para mim escrever livros foi uma conseqüência da pesquisa e coleta de informações. A minha formação é autodidata, os métodos de pesquisa, se assim os posso chamar, são os que fui experimentando e melhorando ao longo desse meu trabalho.

Minha principal preocupação tem sido não deixar perder documentos que ia descobrindo e divulgar uma história que vinha sendo ocultada e deturpada do movimento social no Brasil. Nunca tive a pretensão de entrar na academia ou me tornar famoso.

Eu não chego a partilhar totalmente da opinião do Barão de Itararé que escreveu: "Os diplomas não encurtam as orelhas de ninguém", mas que muita gente até pode voar com elas isso não tenho dúvida. Não existem pesquisas irretocáveis, mas se fosse perfeccionista e escutasse todas as críticas não escreveria 46 livros, nem publicaria 36, ficaria em um ou dois e olhe lá...

Assim consegui tornar públicos centenas ou milhares de documentos sobre o sindicalismo e movimento operário no Brasil que aí estão para quem quiser polir e dar a cera que eu não pude.

P - Como vê o papel dos intelectuais e da universidade numa sociedade como a Brasileira ?

R - A universidade deveria dar uma formação integral e humanista aos estudantes e trabalhar para encontrar soluções ajudando a resolver os problemas da sociedade que a sustenta. O que acontece é o contrário: as academias pouco fazem para dar essa formação ou socializar o saber, perdidas num conhecimento cada vez mais especializado, hermético, que pode até ser profundo, mas com aquela profundidade das brocas que não pegam a luz do sol.

Falta-lhes a vida e o contato com a realidade. Esta especialização vertical é incapaz de entender e se sensibilizar com a realidade, com os homens de carne e osso. Seus livros e suas idéias podem estar "bem vestidas", usar os melhores "alfaiates gráficos", mas raramente se distinguem pela qualidade do conteúdo ou por seu sentido crítico.

São mais frias que uma natureza morta...Talvez por isso não seja de admirar que as nossas elites políticas e econômicas tenham saído dessas universidades!

P - Os movimentos sociais contemporâneos estão longe daqueles que você estuda e com os quais se identifica. Qual a sua avaliação sobre esse movimentos contemporâneos, em particular o sindicalismo ?

R - Os assalariados de hoje vivem ainda sujeitos à exploração ou à exclusão social como os operários e trabalhadores do passado. Também os movimentos sociais e o sindicalismo enfrentam muitos dos problemas do passado, por isso acredito que muitos dos métodos e da teoria do sindicalismo autônomo do passado continuam sendo válidas.

Esse sindicalismo, em que acredito, poderia ser a base da produção, da distribuição e da própria autogestão social. O suporte de uma nova sociedade. Agora o sindicalismo que aí está perdeu-se no corporativismo, politicagem e corrupção pelega, mesmo o que se apresenta pintado de esquerda.

Por outro lado, as modificações sofridas pelo capitalismo, o papel que os meios de comunicação e da própria educação na sustentação do sistema, com a colaboração de toda uma casta de intelectuais, criou condições para este tipo de sindicalismo.

O movimento social perdeu sua autonomia que levava no passado a sustentar seus próprios jornais, manter uma cultura alternativa, com escolas, bibliotecas, teatro e centros de cultura social, alimentando um projeto revolucionário de mudança social.

Hoje aceita a enganação política, perde-se no consumismo e a sua "cultura" é a das novelas da televisão! No entanto, me parece que esse ciclo está chegando ao fim, as contradições existentes na sociedade, cada vez mais evidentes, vão exigir, mais dia menos dia, que se volte a pensar uma solução global para a nossa sociedade e nesse momento muito do que foi pensado e proposto pelo sindicalismo revolucionário e pelos libertários vai voltar a se colocar.

P - A derrocada do sistema que vigorava no Leste europeu tem servido a muitos intelectuais para decretar a morte da utopia e das idéias socialistas. Qual a sua opinião?

R - A revolução popular russa de fevereiro de 1917 foi a esperança de milhões de pessoas em todo o mundo, incluindo na América Latina, só que, logo depois, o golpe dos comunistas em outubro e a aplicação do projeto estatizante e autoritário criou o sistema tudo para o estado (e suas burocracias) nada para o povo.

O resultado está aí à vista passados 80 anos. Uma história de: repressão monstruosa, corrupção, crimes, exploração, falta de liberdade, liquidando toda uma esperança e expetativa criada para os pobres e explorados de todo o mundo e gerando sociedades que hoje entraram em colapso.

A obsessão do poder cegou de tal forma essas burocracias que nem os deixou ver que a pirâmide, em que estavam sentadas, estava ruindo. Afinal o gigante tinha pés de barro...Mas isto não foi o fim da utopia. Esta só morrerá com o homem.

Uma sociedade realmente socialista e libertária teria de se apoiar em três pontos principais: No homem como ser livre e capaz de se melhorar e aperfeiçoar; numa educação racionalista e humanista que contribuísse para capacitar técnica e socialmente os membros da sociedade e criar uma ética e uma cultura que reforçasse os laços comunitários e de solidariedade; na liberdade plena, com igualdade efetiva de direitos e deveres.

Só assim uma sociedade autogestionária poderia desenvolver suas raízes. Utopia? O tempo dirá se o ser humano não pode revelar todo o seu potencial societário positivo que segundo Kropotkin é a base da cooperação e entre-ajuda na sociedade. Otimisticamente os libertários acham que sim.

P - Os libertários partilham de uma visão que aponta a auto-organização social e econômica, a descentralização e o federalismo como solução para a presença opressiva e autoritária do Estado. Qual a viabilidade de uma proposta dessas no mundo contemporâneo e no Brasil em particular ?

R - Já não tenho idade para ser ingênuo e pensar que vai acontecer a curto prazo mudanças profundas nas sociedades que conheço. Os obstáculos a vencer são tais que certamente exigem, entre outras coisas, tempo, agravamento da crise e dos problemas e o renascimento de novos movimentos sociais mais capazes, mais preparados, mais cooperativos e mais fortes para enfrentar esse desafio de criar uma sociedade realmente humana.

Só que para lá do poder e da alienação com que temos de nos confrontar, cada um de nós carrega em si atavismos milenares e deformações culturais e psicológicas, que tornam uma mudança social profunda (que é também necessariamente uma mudança pessoal) um parto difícil.

O anarquismo, como qualquer outra filosofia social não se baseia em milagres (mesmo que muitos acreditem neles). Não se propõe curar todas as enfermidades com um remédio desconhecido, menos ainda somos mágicos.

Pelo contrário, o anarquista é um atleta, um corredor de fundo, precisa de ter fôlego para agüentar os desafios que enfrenta. Quem não for capaz disso, de resistir, de agüentar, não é certamente um libertário. Terá de pensar em ser comerciante ou conseguir um cargo político e se acomodar.

Outra solução é criar uma igreja e conseguir muitos crentes, prometendo uma vida melhor na eternidade, dessa forma consolam-se os tolos e fica rico o padre ou pastor!

A proposta de uma sociedade libertária, baseada na descentralização, federalismo e autogestão social penso ser a mais moderna e atual entre todas que começaram a ser formuladas nos séculos XVIII–XIX.

Dessa forma ela corresponde ao que o mundo e, no nosso caso o Brasil, precisa para resolver grande parte dos problemas sociais, econômicos e ecológicos que se colocam hoje, criando uma sociedade capaz de se autogerir e auto-controlar. O que é um passo decisivo em direção à realização e felicidade humana nesta nossa existência transitória, a grande questão que se coloca aos seres humanos desde os seus primórdios.


* Jorge E. Silva é assessor do Centro de Estudos Cultura e
Cidadania de Florianópolis (CECCA)


Bibliografia de Edgar Rodrigues

– Na Inquisição de Salazar. Rio de Janeiro: 1957.
– A Fome em Portugal. Rio de Janeiro: 1958.
– Portugal Hoy. Caracas: 1963.
– Socialismo e Sindicalismo no Brasil. Rio de Janeiro: Laemmert, 1969.
– Nacionalismo e Cultura Social. Rio de Janeiro: Laemmert, 1972.
– Novos Rumos, Rio de Janeiro: Mundo Livre, 1972.
– ABC do Anarquismo. Lisboa: Assírio e Alvim, 1976.
– Breve História das Lutas Sociais em Portugal. Lisboa: Assírio e Alvim, 1977.
– Deus Vermelho. Porto: S/E, 1978.
– Alvorada Operária. Rio de Janeiro: Mundo Livre, 1979.
– Socialismo: Uma Visão Alfabética. Rio de Janeiro: Porta Aberta, 1980.
– O Despertar Operário em Portugal. Lisboa: Sementeira, Lisboa, 1980.
– Os Anarquistas e os Sindicatos. Lisboa: Sementeira, 1981.
– A Resistência Anarco-Sindicalista em Portugal. Lisboa: Sementeira, 1981.
– A Oposição Libertária à Ditadura. Lisboa: Sementeira, 1982.
– Lavoratori italiani in Brasil. Itália: Galzerano Editore, 1985.
– ABC do Sindicalismo Revolucionário. Rio de Janeiro: Achiamé Editora, 1987.
– Os Libertários. Petrópolis: Vozes, 1988.
– Os Anarquistas, Trabalhadores Italianos no Brasil. São Paulo: Global Editora, 1989.
– O Anarquismo no Teatro, na Escola e na Poesia. Rio de Janeiro: Achiamé Editora, 1992.
– Quem Tem Medo do Anarquismo? Rio de Janeiro: Achiamé Editora, 1992.
– Entre Ditaduras. Rio de Janeiro: Achiamé Editora, 1993.
– O Ressurgir do Anarquismo. Rio de Janeiro: Achiamé Editora, 1993. – A Nova Aurora Libertária. Rio de Janeiro: Achiamé Editora, 1993.
– Os Libertários. Rio de Janeiro: VJR Editores, 1993.
– O Homem em Busca da Terra Livre. Rio de Janeiro: VJR Editores, 1993.
– O Anarquismo no Banco dos Réus. Rio de Janeiro: VJR Editores, 1993.
– Os Companheiros 1. Rio de Janeiro: VJR Editores, 1994.
– Os Companheiros 2. Rio de Janeiro: VJR Editores, 1995.
– Diga Não à Violência. Rio de Janeiro: VJR Editores, 1995.
– Pequena História da Imprensa Social no Brasil, Florianópolis, Editora Insular, 1997.
– Os Companheiros 3. Florianópolis: Insular, 1997.
– Os Companheiros 4. Florianópolis: Insular, 1997.
– Os Companheiros 5. Florianópolis: Insular, 1997.
– Notas e Comentários Histórico-Sociais. Rio de Janeiro: CC&P Editores, 1998.
– O Universo Ácrata (Vol. I e II). Florianópolis: Insular, 1999.
– Pequeno Dicionário das Idéias Libertárias. Rio de Janeiro: CC&P Editores, 1999.

Edgar Rodrigues é ainda autor de milhares de artigos publicados em jornais e revistas de vários países. Muitos desses trabalhos, bem como seus livros, podem ser encontrados no:

Arquivo Edgard Leuenroth da Unicamp


http://www.unicamp.br/suarq/ael/ael.html

As edições mais recentes das obras de Edgar Rodrigues podem ser pedidas à Livraria e Editora Insular:

insular@fastlane.com.br

Amor, aborto, Centenário do Dia Internacional da Mulher...

Por Gilson Caroni Filho

A reação conservadora à proposta de descriminalização do aborto,
contida na terceira edição do Programa Nacional de Direitos Humanos,
deve ser objeto de reflexão.

A celebração do centenário da declaração do Dia Internacional da Mulher não pode passar ao largo de bandeiras caras ao movimento feminista que nas últimas três décadas lutou pelo direito da mulher de deliberar sobre seu corpo, sua vida e o permanente questionamento da divisão sexual no trabalho e na vida cotidiana.

A questão de fundo por trás da gritaria dos setores conservadores e da sua grande imprensa é a apropriação sistemática do corpo feminino por uma ideologia autoritária que se julga no direito de legislar para a mulher, negando a ela qualquer protagonismo.

Sem contar a falácia da defesa do "livre-arbítrio" que seduz parcelas expressivas da classe média, sempre contando com discursos inversamente proporcionais aos seus atos cotidianos.


Argumentar simplesmente que não cabe ao Estado programar políticas públicas sobre o que deve ser decisão privada das famílias é incorrer em três erros fundamentais.

Em primeiro lugar, tal visão supostamente esclarecida, coloca a família como uma instituição à parte da sociedade, sem levar em conta seu papel na reprodução, organização e manutenção da força de trabalho, já fartamente regulamentado pelo Estado, através do Código Civil e da proibição do aborto.

Admite, em última instância, que cabe à estrutura familiar - leia-se à mulher- a responsabilidade não só pela reprodução, mas também pela educação, alimentação e saúde dos filhos. E é nesse ponto que se juntam “liberais”, reacionários e a Igreja Católica.

Ao fechar os olhos às diferenças econômicas que obrigam grande parte das mulheres pobres a recorrer a procedimentos abortivos arriscados ao invés de ter assistência médica devida, os arautos da criminalização alimentam a linha de montagem da saúde que só prospera a partir de um aparelho reprodutor lesado em “açougues" sem qualquer estrutura de atendimento. Por tudo, bem diferente das clínicas caras a que recorrem suas congêneres mais abastadas.

Os que atacaram o Ministro da Secretaria Especial de Direitos Humanos, Paulo Vannucchi por defender uma ”bandeira feminista” fingem ignorar um fato que é de conhecimento internacional: em todos os países onde o aborto foi descriminalizado a redução do número de casos foi enorme.

O acesso a uma clínica ginecológica obstétrica normal inscreve a mulher em um programa de controle da reprodução. Ao invés do risco cirúrgico, a orientação clínica prestada por consultórios legalizados de interrupção voluntária da gravidez.


Uma mudança que faz toda a diferença quando o valor maior é a integridade do ser humano.

Lutar pela vida é querer que o Estado se responsabilize pelo atendimento à saúde das mulheres nas diferentes fases da vida.


Que coloque à disposição de todas elas o conhecimento e acesso a métodos de contracepção, ampliando o número e a qualidade dos postos de saúde.

A opção por não ter filhos deve vir acompanhada por investimentos que facilitem a opção pela maternidade desejada.

Planejamento familiar significa antes de qualquer coisa condições reais de alternativas que não existem numa conjuntura de preconceito, exploração econômica, racismo, e onde o aborto é considerado um ato criminoso.

Se por volta dos anos 1970 a luta feminista era tratada pela Academia e pelos meios de comunicação como ideologia importada, há um bom tempo ela é reconhecida como expressão social interna da sociedade brasileira.

Repensar o pacto doméstico, atenuando a dupla jornada e reivindicar, como faz a CUT, a “ratificação da Convenção 156 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – atualmente aguardando votação na Câmara dos Deputados –, que determina a equidade de tratamento e oportunidades para os trabalhadores dos dois sexos com responsabilidades familiares, e a ampliação das licenças maternidade e paternidade para seis meses" são maneiras explícitas de declarar amor às mulheres.

Como explica em entrevista ao Portal Mundo do Trabalho Rosane Silva, Secretária Nacional da Mulher Trabalhadora da Central Única dos Trabalhadores, “um dos argumentos para não contratar ou não promover nossas companheiras é que ficamos muito tempo fora da empresa devido à licença-maternidade". É a lei do valor redefinindo o significado da Lei do Ventre Livre.

Reconhecer o valor da mulher é lutar ao lado dela por conquistas legais e pela implementação de políticas públicas que respondam satisfatoriamente a reivindicações seculares.

Avançar com propostas globais, estruturais é acariciar uma síntese de múltiplas gerações. Convém mandar flores.

Fonte - site Carta Maior